193. Armazém; pedreiro; sensações e impressões; paciência artificial; porfirogênito; consequências; o que está passando; listas
O jornalismo já foi oposição. Hoje, é armazém de secos e molhadinhas.
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Nosso velho pedreiro, o Paulão, dizia que uma parede de tijolos erguida no prumo e com os tijolos bem unidos por massa ou barro só cai com terremoto, mesmo sem não tenha colunas nem vigas de concreto. Deve ser verdade; ando por São Paulo e vejo muita casa velha, de tijolo, impávida em pé, apesar de judiada. Sei que são casas de tijolos porque o reboque das paredes geralmente aguenta menos, cai aqui e ali e deixa à mostra a intimidade, as pudendas de barro cozido.
Vendo essas pudendas, reparo: não foram só os chocolates e os pacotes de biscoitos e bombons que diminuíram neste Brasil onde tudo, principalmente a inteligência, encolhe: os tijolos também encolheram. Caso queira tirar a prova, o amigo arrisque a vida e passeie, por exemplo, ao longo dos muros da estação de trem do Brás, na rua Domingos Paiva. Ou ao longo dos muros do Cemitério da Consolação, e entre os jazigos lá dentro. Ou passeie pela Estação da Luz. Verá que os tijolos antigos tinham, no mínimo, o dobro do tamanho dos de hoje, e aparentam ser bem menos frágeis, bem menos quebradiços.
Minha casa anterior, que logo será posta no chão, era feita assim, de tijolos grandes colados com barro na maior parte das paredes, com cimento numa parte menor. Como a maioria das casas de periferia, foi sendo erguida aos poucos. Pelo modo como está feita, o lado esquerdo dá a impressão de ter sido erguido antes do direito, ou seja, na prática, uma casa mais nova foi colada a uma mais velha.
Paulão trabalhou nela em várias ocasiões, tanto com o dono anterior quanto comigo. Era, como o geral dos pedreiros, pinguço forte. Por causa disso, teve um derrame e, depois dele, passou a beber somente café – e o bebia aos barris. Quando vinha trabalhar em casa, fazíamos dois bules grandes cheios; ele tomava um inteiro e boa parte do outro.
O derrame lhe deixou três sequelas. Uma, o passo bamboleante, de quem só consegue o equilíbrio fazendo dos quadris uma espécie de giroscópio. Outra, a boca meio amolecida, que fazia sua fala parecida com a de um bêbado. E a terceira era engraçada: ele não podia ouvir um estampido – de bombinha, de escapamento, de tiro – sem ter uma pequena convulsão. Ele nos contava que, nas noites de Natal e de Ano Novo, punha o colchão no chão: se deitasse na cama, era batata: cairia quando o foguetório começasse, derrubado pelas sezões.
Toda vez que, trabalhando em nossa casa, ele precisava subir numa escada ou no telhado, cruzávamos os dedos para não vir estampido nenhum e ele não caísse. Já era difícil pagar reformas e consertos; quão mais seria pagar o hospital para ele. Felizmente, tudo sempre deu certo.
Tirando isso, não era nem de longe o melhor dos pedreiros. Era do tipo que conserta vazamento de canos com massa e durepoxi, e colava telhas com massa também. Deixava barrigas em canos e calhas, e seu prumo era lotérico. Mas era bom sujeito, forte como um cavalo, e, ao rir, relinchava como um.
Talvez ele se entristeça de saber que logo, logo, tanto do seu serviço vai ser demolido.
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De Miguel de Unamuno conheço apenas uma frase, lida aliás há pouco tempo: “Lo que tengo son impresiones e sensaciones”, o que tenho são impressões e sensações.
Não é uma frase genial, nem cheia de wit, mas é precisa. Pensando aqui enquanto escrevo, deixo as sensações para a carne, e as impressões para o espírito (ou para a mente). Como muitas impressões nascem das, ou racionalizam as sensações, me dou por satisfeito de deixar as coisas assim, e por isso me saber homem e não bicho. Bicho – corro um certo risco de ser injusto – são sensações que não se transformam em impressões.
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She came in through the bathroom window
protected by a silver spoon.
Ela entrou pela janela do banheiro, protegida por uma colher de prata (ou por um berço de ouro: to be born with a silver spoon in his mouth é o equivalente inglês do nosso “nascer em berço de ouro”). É o comecinho da letra de She came in through the bathroom window, música dos Beatles (está no disco Abbey road) que tem uma cover célebre e muito boa do Joe Cocker.
Já quis perguntar a uma inteligência artificial se ela se sentiria protegida por uma colher (colherona ou colherinha, tanto faz) de prata, só para ver se ela se confundiria – eu não tenho amizade às inteligências artificiais. Talvez a IA achasse a letra e me dissesse que sim. Ou me mandasse perguntar ao Paul McCartney, que foi quem saiu com essa.
Como uma coisa puxa a outra, terminei me perguntando se essas IAs limitam suas buscas à web “legal”, aquela mais ou menos mapeada pelo Google, ou se vão futucar também os desvãos da chamada deep web. O melhor jeito de saber, sugerido por um amigo, seria perguntar a uma delas como fazer bombas caseiras com sabonete e adubo. A resposta provavelmente seria:
— Desculpa, mas sou proibida de responder isso aí.
É claro. E eu perguntaria:
— Faz sentido. Mas vem cá: mesmo que você não possa me dar a resposta, você sabe onde encontrá-la? Você a tem?
Mas talvez isso seja testar, mais do que a inteligência artificial propriamente dita, a paciência, igualmente artificial, do troço. Pensando bem, seria legal.
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Li A queda da casa de Usher no volume de contos de Poe chamado Histórias extraordinárias, volume que aliás tenho até hoje. E só recentemente descobri o que quer dizer o adjetivo porfirogênito usado pelo narrador para se referir a Roderick Usher: é filho da púrpura, título dado, no Império Romano do Oriente, ao filho ou filha nascido a um pai Imperador, portador, portanto, da púrpura imperial (nossa, essa frase parece escrita na língua do pê).
Um dos étimos desse termo se refere à pedra pórfiro, pedra vermelha que, segundo reza a Wikipedia, revestia, em Bizâncio, a sala onde as Imperatrizes davam à luz.
Ou seja, Roderick Usher nasceu with a silver spoon in his mouth, isto é, em berço de ouro: era filho de algo, fidalgo.
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Fulano se comportava como se as consequências das suas ações tivessem medo de apanhar, ou não aguentassem o confronto contra a força da sua personalidade.
Mas as consequências são como as baratas. E daí que você lhes lance olhares fulminantes e pise nelas? Elas vêm.
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Conversando com amigos sobre uma lista de filmes perfeitos feita pelo Quentin Tarantino, cada um de nós fez a sua, esclarecendo como interpretava o adjetivo “perfeitos”. O critério dos amigos foi “filmes dos quais não se mudaria nada, nem uma fala, nem uma cena, nada”. É um critério excelente. Mas a minha memória anda falhando demais; por segurança, meu critério foi o dos “filmes que sempre que estão passando eu paro e vejo”. Me pareceu, e me parece ainda, um critério, senão excelente, ao menos justo. Mas aí eu me dei conta do anacronismo da expressão “sempre que estão passando”.
Vivemos a era do streaming, que bem pode estar para acabar sem a gente se dar conta. Mas, ora, na verdade, quem tem a minha idade – eu nasci vinte dias antes do lançamento de Sergeant Pepper’s lonely Hearts club band – viveu até agora várias eras diferentes, algumas simultâneas, concomitantes (outras acavaladas): a da TV colorida, a do rádio FM, a do videocassete, a do CD, a do DVD, a da internet discada, a do hipertexto, a do mp3, o fim do jornal impresso como meio relevante (e o quase fim das revistas impressas), a do flac, a dos blogs, a dos podcasts, esta do streaming, e agora a da IA. O amigo sem dúvida se lembrará de outras. Podemos dizer que numa vida nem tão comprida passamos por mais mudanças materiais e culturais do que um europeu médio teria passado se vivesse do século XIII até o XX.
(Acrescento, de passagem, que a IA, tal como está – ou tal como a percebo – é um sonho dos totalitários soviéticos tornado real. Tomara eu esteja enganado.)
Pois hoje a era concomitante com outras é a do streaming, a qual ainda não matou, mas combaliu bastante a do DVD, e talvez seja responsável também pelo cinema ter virado mais ou menos a porcaria de ultimamente.
Obviamente, na era do streaming nunca está passando nada. Você é quem vai lá, entra no serviço e escolhe no catálogo (90% ruim) o que quiser ver. Como uma locadora de bairro acionada por controle remoto – tão de bairro que geralmente você é obrigado a mudar as configurações se quiser ver seu filme legendado em vez de dublado. E mesmo nos canais ditos comuns de TV a cabo, hoje você tem a escolha de assistir o que já passou algumas horas ou dias antes, ou voltar ao começo algum programa ou evento já começado, como um jogo de futebol ou show musical.
Minha experiência de velhote, e o mundo mental onde ainda vivo, porém, ainda é a do está passando. O mundo em no qual, quando você liga a TV, é surpreendido pelo que esteja no ar (aliás, a própria expressão “estar no ar” faz cada vez menos sentido também).
Isso era melhor? Era pior? Não sei dizer. Gostava e ainda gosto de ser surpreendido, como aliás ainda acontece com o rádio, mas também gosto da comodidade de ir diretamente àquilo que quero nos streamings, e só lamento a pobreza dos catálogos. E também gosto de achar com facilidade, mesmo relativa, as coisas indicadas pelos amigos.
Ou seja: eu estou como você aí, amigo, um pouco lá, um pouco cá, flutuando entre o que já foi e o que, para mim, ainda não acabou de acontecer mas já está sendo atropelado pelo que vem por aí. Às vezes é interessante, às vezes é um saco.
Hoje, por exemplo, quis ver The commitments e não achei, portanto hoje é um saco.
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Se o amigo quiser a lista do Tarantino, precisará fazer buscas no Google e pedir a ajuda da inteligência artificial do mecanismo, porque é preciso compilá-la de muitas entrevistas e artigos. Se quiser a dos meus amigos (com os meus no meio), veja este tuíte do Alexandre Soares Silva.
Se quiser só a minha, tome (aumentada):
O grande Lebowski;
Manhattan, Meia-noite em Paris, A rosa púrpura do Cairo, A era do rádio (quatro Woody Allen em seguida, sim, sim, adoraria essa sessão);
A filha de Ryan;
Este mundo é um hospício;
O homem que perdeu a hora;
Um peixe chamado Wanda;
Janela indiscreta e Ladrão de casaca (dois da Grace Kelly e do Hitchock);
Os inocentes;
Bonequinha de luxo;
Quatro casamentos e um funeral;
O iluminado;
Um convidado bem trapalhão;
Irma, la douce;
Quanto mais quente, melhor;
Um estranho casal;
Quinteto da morte;
A gaiola das loucas (o original, com Ugo Tognazzi e Michel Serrault);
O incrível exército de Brancaleone;
Totò procura casa;
Qualquer um da série da Pantera cor de rosa com o Peter Sellers;
Qualquer um da trilogia do Senhor dos anéis.
Basta que “estejam passando”.
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E passando está o tempo, amigo. Ele foge e voa, e nós, bem, nós não precisamos correr tanto. Até semana que vem.
Você não me perguntou, mas vou citar alguns dos filmes que mais acho interessantes: Teoria da Conspiração (com Mel Gibson e Julia Roberts), Vestígios do dia (com Anthony Hopkins), Terra das sombras (cinebiografia de C. S. Lewis, também com Sir Anthony Hopkins), O favor, o relógio e o peixe muito grande, Intocáveis (com estrelado elenco), Onde os fracos não tem vez (o tempora, o mores), Barry Lyndon. Provavelmente alguns outros mais, mas, está lista é daqueles que revejo de quando em quando.
Os representantes de Hitchcock,Woody Allen e Peter Sellers da sua lista também estão na minha. Com o Totò meu favorito é "la banda degli onesti ".