206. Justiça; cone; governo; bênção; artista; Sabugosa; lentes; óculos; Sandwich; neanderthais; chinês; link
Seria bonito ver uma campanha publicitária do governo chamada “imposto é justiça” com o slogan “seja justo, pague o seu”.
Podiam ilustrá-la com fotos sorridentes da Jorojonja, da Gleide e do Conde Drácula.
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Escrevi Cone Drácula e fiquei rindo sozinho. Que bobo.
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Todo botequim, toda tasca tem uma turma de bêbados fiéis que ganha o apelido de “diretoria”.
Os garçons igualmente fiéis deveriam ter o apelido de “ministros”.
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A ignorância é uma bênção, diz aí um ditado, e podia acrescentar: é uma bênção voluntária. A gente escolhe ser ou continuar ignorante a respeito de alguém ou de alguma coisa sabendo que, ao assim fazer, mantém ou prolonga uma bênção, um estado de graça.
Vou dar como exemplo a Lady Gaga, cujo nome li muito por estes dias nas redes sociais e até ouvi na feira de domingo. (É verdade: um feirante e um freguês falaram dela – não digo o quê: eram coisas que só se podem falar na feira.)
Dela sei três coisas e acho uma quarta. As três que sei: é ou se finge de cantora, é nariguda, e é ou foi boa de corpo. A que acho: ela andou por aí uns tempos vestindo um paletó feito de bifes crus (coisa de artista).
Sinto-me abençoado por não saber mais nada, e pretendo perseverar na ignorância, a fim de não comprometer, já não digo a salvação da minha alma, mas uns quinhentos anos no purgatório.
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Falando em coisa de artista, às vezes vejo gente na rua e, pelos trajes, identifico: é artista. Não é caixeiro(a), não é bancário(a), não é desenhista técnico(a), não está indo pra faculdade de odontologia: é artista.
Transparências, brilharecos, falta estratégica de pano em lugares também eles estratégicos, dobras, folgas e despencamentos, chapéus, correntes e bonés: o amigo, tenho certeza, sabe do que estou falando.
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Lendo Na Capitania de São Vicente, de Washington Luís, vim a saber que, mais do que os livros de Monteiro Lobato, Portugal teve logo Condes de Sabugosa. O primeiro deles, de nome Vasco Fernandes César de Meneses, chegou a ser Vice-Rei do Brasil de 1720 a 1735. Durante seu vice-reinado, seu irmão, Rodrigo César de Meneses, foi Capitão-Geral da Capitania de São Paulo (Washington Luís escreveu livro sobre ele também, Capitania de São Paulo: governo de Rodrigo César de Meneses), entre 1721 e 1728.
Para que pudesse ter Condes (e depois Marqueses), tinha de haver um lugar chamado Sabugosa. E há: é uma povoação portuguesa que já foi autônoma mas hoje é parte da Freguesia de São Miguel do Outeiro e Sabugosa, a qual, em 2021, reunia 1214 almas – menos da metade do público de um jogo do Juventus. Não sei se teria mais gente no século XVIII; ainda assim, mereceu ser condado.
Sabugosa é derivação de sabugal, a “terra abundante em sabugos”. Ora, o sabugo é a espiga de milho debulhada, mas também pode ser – os ensinamentos são do sr. Aurélio – “a medula do sabugueiro”, nome de plantinha simpática de jardim que vem do latim sambucus. Do sabugueiro se faz um chá bom pra gripe e aflições do pulmão. Adivinho, pois, que a Sabugosa de Portugal fosse terra mais de sabugueiros que de sabugos.
O Conde de Sabugosa que vice-reinou por aqui não era homem de suavidades nem de conduta lhana, e seu irmão que capitaneou de modo geral esta província e cidade onde escrevo o foi ainda menos. Tudo em triste acordo com o tempo, o lugar e a gente sobre a qual vice-reinar e geral-capitanear: também eles não eram mansos. O condado foi dado ao senhor Vasco depois dele ter debelado, na Bahia, o Motim do Terço Velho, mandando enforcar e esquartejar dois soldados líderes dos amotinados. Ele teve que responder por esse ato, tido até pelos seus coetâneos como “meio exagerado”. Respondeu, e respondeu bem, tanto que ganhou o título. Eis o Conde.
Não assim o cortês, erudito e mofado sabugo de Monteiro Lobato. Que, nos desenhos de Belmonte, ainda usava monóculo.
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Eu, quando mais moço, confundia monóculo, pincenê e lornhão; achava que era tudo a mesma coisa.
O monóculo é aquela lente num olho só, qual a usava o Eça de Queirós, que exigia cordinha ou corrente para ser preso ao pescoço, e bigode (daí não se verem muitas mulheres com monóculos). Sem o acompanhamento do bigode, o monóculo é como espaguete sem molho, goiaba sem bicho ou socialismo sem fugitivos.
Mulheres (e certos homens) usavam o lornhão: óculos que, em vez das pernas para prender às orelhas, tinham uma haste vertical, que permitia às madames (ou aos tais certos homens) tirá-lo e pô-lo com elegância, donaire e, até, algo de autoritário. Apesar do nome: lornhão é o feio aportuguesamento do francês lorgnon.
O lornhão da maioria dos homens era o pincenê: um lornhão sem haste, preso ao nariz por uma mola ou pinça. O nome francês, pince-nez, quer dizer isso mesmo, pinça-nariz. Não exige bigode, ainda que vá bem com ele, razão pela qual mulheres também o usavam.
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Eu uso óculos desde os dez anos de idade. Em 1977, creio eu, ainda não havia a profusão de tipos e cores de armações que há hoje: havia o padrão Clark Kent (preto e quadradão) para os meninos, e o “gatinho” para meninas, e olhe lá.
Ser “quatro-olhos” era fonte de zoação pesada, “zoação” sendo o nome que se dava, no século passado, ao bullying. É verdade que tem que haver algo de errado com um menino de dez anos que use óculos; em algo ele há de ser incapaz. Não só em ler de perto ou de longe (aliás, no Brasil, não ler nunca foi defeito): possivelmente ele junto tem as pernas tortas, ou também ouve mal, ou baba.
No meu caso, havia pura e simples miopia de um olho, o esquerdo, a qual aliás persiste e só piora (só alguns uísques e os violinos Stradivarius melhoram com o tempo; os vinhos, se largados tempo demais, viram vinagre).
Talvez um monóculo resolvesse o meu problema naquela altura. Mas quem já viu moleque de monóculo? Só na nobreza inglesa.
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Fala-se muito mal das bets, das casas de apostas por aplicativos e pela internet, e fala-se mal com razão, posto que andam desgraçando a vida do pobre quase tanto quanto o governo.
Quanto a mim, o amigo já me conhece: eu sou do contra e quero falar de pelo menos uma coisa boa que o hábito das apostas e das jogatinas deu ao mundo.
O sanduíche.
Puxo pela sua própria memória, caro leitor, que decerto já conhece a história. Há na Inglaterra um lugarejo chamado Sanwdich, quiçá a Sabugosa da loira e pérfida Albion, que, lá como lá, tem também seus Condes, todos da família Montagu. O quarto desses condes, batizado John, era, segundo as más línguas do tempo, tão aferrado à jogatina que não levantava da mesa nem para almoçar ou jantar. A fim de aquietar o estômago, mandava vir da cozinha fatias de carne fria metidas entre duas outras de pão: assim nasceu aquilo que os finos cultores da última flor do Lácio depois chamaram de sanduba.
O amigo talvez me pergunte duas coisas. Uma, se a história é verdadeira. A resposta é: dizem que não, mas é divertida, portanto vai ficando. Duas, como é que ele se virava com necessidades outras. A resposta é: não se guardou registro.
Não roubemos porém à jogatina, à bet do século XVIII, a glória de gestar uma das criações culinárias mais úteis de todos os tempos. Quem sabe se as de hoje não nos darão coisa igualmente útil?
Antes de sucumbir ao hábito de bettor, o Conde foi homem de muitas atividades e ganhou renome como prócer público; tanto que tem umas ilhotas batizadas com seu título, as Ilhas Sandwich, que estão ali nas cercanias das Falklands e são ainda menos úteis (e inabitadas).
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Hoje, sete de maio, pelas sete da manhã, querendo notícias do conclave, sintonizei (ainda se usa esse verbo nestes dias de streaming?) na Globo News (pois é, eu não aprendo) e vi que o canal pretendia, a respeito desse assunto, entrevistar um professor de... antropologia.
Eis aí, católicos: somos os Neanderthais do terço.
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Não faço caso de esconder que me abasteço muito de informação consultando a Wikipedia, muito em prol de manter o silly no nome desta newsletter. Fui a ela colher informações sobre os condes de Sabugosa e de Sandwich, e descobri que, quando você vai procurar seu verbete em outro idioma, as primeiras oferendas não são do inglês, mas sim do chinês.
Deixo solta a informação para sua meditação, amigo, assim como deixo aqui o link para a minha crônica nova na Crusoé. Leia, medite, torne-se mais sábio, e me encontre aqui de novo, se Deus quiser, na semana que vem.
Suas três coisas sobre Lady Gaga me fizeram lembrar que há um tempo a única coisa que eu sabia sobre a Anita era que ela tinha feito uma tatuagem no toba,todos comentavam,e olha que eu nunca escutei uma música dela.
Cone de Sabugosa 🙃