208. Janela; zantê; arte; nomes duplos; nomes simples; mulheres; futebol 1 e 2; bobagem; jogo de armar; classificados; verificação; menopausa; meritocracia; bobagem 2; aniversário
Ainda peguei tempo e lugar em que mães ou avós chegavam à janela ou à porta para chamar as crianças que estavam fazendo arte na rua. Gritos agudos de “Maria Alííííííce, passa pra dentro!”, ou “Émerson Francisco, vem já aqui!” se ouviam no cair das tardes na cidade natal da minha mãe, interior de Minas Gerais, nos anos 70, e nunca, jamais, eram desobedecidos. Se fossem, era batata: alguma coisa tinha acontecido à Maria Alice ou ao Emerson Francisco, e o negócio era ir procurá-los imediatamente. Era raro não serem achados; menos raro era serem achados juntos, as Marias Alices e os Émersons Franciscos, as Ritas Reginas e os Cássios Alexandres, hoje talvez todos felizes avós e avôs. Marialíce saía assim grudado; Émerson muita vez virava Mérso; Rita era Rita e Cássio era Cásso. Minas Gerais.
Eu também era chamado assim. “Júúúúúnho”, o “u” ficando cada vez mais agudo ou mais cavernoso consoante quem me chamasse fosse nova ou velha, avó ou avô. Era quase como um toque de berrante; meu nome soava como berro de vacum.
São Paulo já quase não era mais assim, pelo menos na área quase central em que eu vivia, o Brás; mas o bairro ainda tinha muitas vilas, e as casas tinham famílias com filhos, então nelas, talvez, o costume persistisse. Mas não presenciei.
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Meu pai contava de uma senhora estrangeira que há uns noventa anos, na Casimiro de Abreu, chamava seu filho assim:
— Janzê, sê-de-mê-derrê que lê vê zantê!
Só o moleque entendia. Um dia ele traduziu pros outros:
— Joãozinho, sai do meio da rua que lá vem o bonde.
Tudo dedutível, menos o zantê. Em que patuá bonde vira zantê? Isso me impede de adivinhar a terra natal da matrona. Dizia meu pai que era portuguesa, mas não acredito.
Em todo caso, o berro funcionava. Ao contrário do Gaetaninho, o bonde nunca pegou o Joãozinho.
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Crianças “faziam arte”, eram “arteiras”. Isto queria dizer que faziam bagunça, que eram bagunceiras, pequenos selvagens das ruas. Olhos roxos, dentes quebrados, bochechas unhadas, canelas torcidas, joelhos ralados, um ou outro atropelamento e escoriações variadas eram fruto dessas artes.
Hoje em dia, “fazer arte” é ir trabalhar no telemarketing vestido como malabarista de circo. Sim, tudo piora.
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Maria Alice, Émerson Francisco. Antes da mania dos nomes tirados de filmes e seriados estrangeiros e escritos de forma extravagante (Kétleyn, Diônatas, Níkolas, Welinto, Eimyllyn), o brasileiro ali na faixa mais humilde do campo gostava do nome duplo. Talvez isso viesse das radionovelas cubanas, tipo Direito de nascer. Uma diversão que eu tenho com meu irmão é ficar inventando nomes duplos horrorosos para crianças que, felizes delas, não existem: Kátia Kelly, Suzana Sandra, Marlene Virgínia, Mikael Marcus, Marcelo Aparecido, Amâncio Davi, Marli José.
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Ser chamado pelos dois nomes também era sinal de encrenca:
— Maria Alice, venha aqui a-go-ra!
Se tivesse um “dona” na frente, a surra era quase certa:
— Dona Maria Alice: já aqui!
Se viesse o nome completo, com sobrenome inteiro, era a chamada do fuzilamento:
— Émerson Francisco Mascarenhas do Prado, se eu tiver que ir até aí te pegar…
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Os Tosetto não têm o costume de pôr o nome da família materna nos seus filhos e filhas. Meu avô sonegou ao seu sexteto o Bobato de minha avó, meu pai sonegou a mim e a meu irmão o Gonçalves de minha mãe, eu soneguei à minha filha o Satiro e o Silva da minha mulher (ela dizia que meu sogro guardou mágoa disso, mas ele também sonegou aos filhos o Santos da minha sogra). E, bons paesani, boas almas camponesas, nunca usamos nome duplo. É nome e sobrenome, só. Coisa de pobre. Eu tenho o excesso de um Júnior para não ser confundido com meu pai pela burocracia estatal; seria a máxima concessão, se concessão fosse, e não medo de pai responder por filho e vice-versa (o risco seria muito maior para mim do que para ele).
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Morar em apartamento com duas mulheres (calma, uma é minha filha) quer dizer duas coisas: 1) esperar às vezes muito tempo para usar o banheiro, e 2) sair apagando lâmpadas ligadas em cômodos vazios.
Quem gosta de homem é a polícia. Mulher gosta de torneira aberta e luz acesa.
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Homem do meu tempo, para mim é inconcebível torcer para um time, já nem digo de outro país ou estado, mas de uma cidade diferente da minha (note que nisto nem sou tão radical quanto os argentinos do meu tempo, principalmente os de Buenos Aires e região, para muitos dos quais é inconcebível torcer para time de outro barrio).
Meu tempo, entretanto, está indo ou já foi. E cada qual torce para quem bem quiser, é claro; sou só um velho falastrão, não um código penal ou de ética de torcida.
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Dito isto, andei espiando o último jogo oficial do Everton na sua cancha mais que centenária, Goodison Park. O clube vai passar a mandar seus jogos num estádio novo, mais moderno e maior, cujo nome (soube hoje, enquanto dava o arremate nesta news) vai ser o de um escritório de advocacia, qual patrocínio de time de várzea (nas costas da camisa: Gérson Souza Advocacia Criminal, Cível & Vara da Família). O velho Goodison vai ficar, ao menos por ora, reservado para o time de futebol feminino do clube, ainda que pareça ser grande demais para isso (o plano anterior era demolir).
A Wikipedia ensina que o clube jogou ali de 1892 a 2025 – por 133 anos, portanto. Nenhum clube brasileiro tem essa idade. Seu recorde de público aconteceu em 1948, num clássico com o Liverpool presenciado por 78.299 almas, quase todas em pé. Hoje, com as reformas antihooligan e antitragédias, acomoda 39.414 pessoas, todas sentadinhas.
Durante a transmissão, o comentarista do jogo disse que foi em Goodison Park a única vitória no Brasil na Copa do Mundo de 1966, 2x0 na Bulgária, gols de Pelé e Garrincha – e parece que foi também o último jogo oficial da seleção em que os dois marcaram gols juntos. Na verdade, os três jogos do Brasil naquela copa de má memória foram nessa cancha, inclusive aquele em que os patrícios de Portugal conseguiram a proeza de bater no Pelé mais do que os argentinos e uruguaios.
O Everton Football Club já foi um grande inglês, mas hoje é uma espécie de Torino ou Vasco da Gama, frequentando sempre a página 2 da classificação. Descobri que para ele torcem ou torceram quase todos os Beatles (menos o Ringo, que é Arsenal), Shane McGowan, Helena Bonham-Carter, Sylvester Stallone, Dolph Lundgren e Judi Dench. Nada mau.
Fico feliz que não ponham, pelo menos logo de cara, o estádio abaixo. Frequento a Javari sempre que dá (ultimamente, sempre que o Juventus condescende em jogar), não tão velha, limpa ou grande quanto o Goodison mas charmosinha a seu modo, e me dá tristeza pensar nela reformada ou demolida.
Não guardo ódio eterno ao futebol moderno, não (qualquer ódio que eu tenha vai morrer comigo, aliás); só fico triste de perder a minha paisagem.
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Gosto muito de Borges, mas “noite unânime” é besteira, né? “Todos aqueles a quem perguntei responderam que era noite, sim, senhor.”
Ou me falta finura nesta.
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Jogo de armar, ou: psicografando Faustão Exocet.
Rosaninha pompoarista paranormal, pedagoga fantasma, podóloga zumbi, pasteleira xamânica, pindamonhangabana Frankenstein, pizzaiola vampira, paramédica orixá, miss paste-up B12, pepperoni Epcot, parlamentar pirlimpimpim, rainha do Pontal psicodélico do Paranapanema (Exocet) na virada verificada de toda vida que esvai pela via evitada pelas vísceras viciadas de quem vive em vão na gênese gnóstica das gerações geminianas e por aí vai. Exocet.
O ritmo é 114 BPM.
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Juvenal Becker, o fact checker, ganha escritório na redação do jornal, com mesa, crachá, terminal e ramal. Veem-no com um lápis vermelho, debruçado sobre resmas de papel.
— O que ele está fazendo?
— Checando os classificados.
— A gente não publica mais classificados.
— Cala a boca, ele não sabe.
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Hoje em dia se verifica pouco ou quase nada. Em compensação, o que se checa é um colosso.
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Numa pesquisa onírica que fiz noite passada, deu que dez em cada dez fãs de BBB acham que Pausânias é nome de sintoma de menopausa.
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Lembre-se de que abrir uma oficina de consertos de bicicletas é seguir a ideologia capitalista do empreendedorismo.
E lembre-se de que querer ser um bom consertador de bicicletas é aderir à falácia da meritocracia.
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Comecei a ler A morte do pai, do assaz louvado Karl Ove Knausgård, e logo no começo do terceiro parágrafo tem isto:
No exato instante em que a vida abandona o corpo, ele passa para os domínios da morte.
Ou seja: tão logo morra, você passa a ficar morto.
Parei aí. Não descarto que o livro melhore, mais pra frente, mas eu sou brasileiro e desisto fácil. Também, vem cá: não dá pra gostar disso e, ao mesmo tempo, xingar o Paulo Coelho, o Itapior, o Stephen King e as encheções de linguiça da ficção científica.
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Com esta newsletter de número 208 inteiram-se quatro anos de Silly Talks. Obrigado pela companhia e pela leitura. Enquanto as pernas (e principalmente os dedos que digitam) aguentarem, seguiremos por aqui. Ah: leia também minha crônica nova na Crusoé; e até semana que vem.
Ao ver o Santos (herança de família) na situação que está, repito para mim mesmo essa ladainha de que torcedor que se preze torce pro time da cidade. Afinal o Maringá pode ter perdido de 3 a 0 pro Atlético-MG ontem, mas fez 2 em cima do galo no jogo de ida.
Quatro anos! Mas já está enorme. Eu me lembro de quando esta newsletter era um bebezinho!