209. Ódio; corrupção; provas; mediunidade canina; comparativos; fãs; tempo e reencarnação
Estamos assim: se você diz que a gravata do cara é feia, é ódio.
Isso vem da infância. Quando a mãe do sujeito lhe negava um pastel, um pirulito Zorro, um gibi do Pateta, ele dizia: “Ah, a minha mãe me odeia”.
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Olhe, se eu saísse por aí marchando a favor da Cracolândia, da maconha, das drogas em geral, levaria um cartazinho apoiando a corrupção policial. Porque se a polícia não fosse corrupta, os traficantes estariam todos em cana, e aí, pô, cadê Cracolândia, cadê maconha, cadê drogas em geral? Pense nisso.
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Coisa legal dos portais-vozes do governo é o “sem provas”. “Sem provas, Trump diz que...”. Como se os portais tivessem provas de tudo o que dizem de bom deste, de mau daquele, etc.
Imagino um “Sem provas, portal Faz-o-L-de-São-Paulo afirma que Trump faz afirmações sem provas”.
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Morreu-me a cachorra, como escreveria o Machado, há coisa de dois meses, e os amigos Carlos de Freitas e Luigi Marnoto botaram em seu programa quinzenal no Youtube, Trocando as bolas, a modo de homenagem, um desenho da cara dela em jeito de mangá feito por uma dessas tantas inteligências artificiais que andam por aí. Vi o programa em casa e me emocionei discretamente: temos pelos bichos o mesmo amor meio triste, meio injustificadamente orgulhoso que temos por crianças atrasadas, e nos sentimos sempre meio culpados pela brevidade de suas vidas, brevidade que o mais responsável e atencioso de nós consegue, no máximo, esticar um pouco. Não estava no meu alcance aumentar os quinze anos que ela viveu, mas senti dela uma ponta dessa saudade culpada.
Enfim, visto o programa, quinze minutos depois tocou a minha campainha. Fui ver quem era: um morador do prédio, senhor italiano, oitentão, célebre nos anais condominiais por sua rudeza e por sua surdez parcial, que chamarei de “Roberto” para proteger sua identidade (não sei por que protegê-la, e nem do quê; você nunca vai conhecê-lo, amigo; mas vá, protejo). No colo, trazia um cachorrinho desses minúsculos, pinscher, que vivem tremendo de frio, de ansiedade, de fome, medo e ódio. Na ocasião, o cachorro tremia um pouquinho mais do que o costume. Com sua voz alta, rouca e grave, cheia de erres linguais, o velho Roberto me deu o “boa tarde”. Dei-o de volta e acrescentei um “pois não?”. Ele entrou no assunto:
— Eu trouxe aqui o meu cachorro, o Roberto II, porque ele tem uma coisa para lhe comunicar.
Roberto II, via-se, também é bem velhinho já. Seus olhos, remelados, pareciam baços, na vizinhança da cegueira. Como a minha cachorra nos seus últimos anos. Ia no colo do Roberto I por perigoso, talvez, mas certamente porque não aguenta dar vinte passos sem ter uma síncope. Ergui as sobrancelhas, à espera do comunicado. Roberto I o incitou:
— Vai, Roberto.
Roberto começou a tremer mais do que sua raça treme de ordinário; babou um pouquinho. Quando pensei que ia infartar, soltou três latidos débeis e pausados:
— Au. Au. Au.
Em seguida, pareceu adormecer. Talvez tivesse desmaiado. Roberto I me encarou.
— Você entendeu?
Confessei que não.
— Eu vou lhe explicar. O Roberto (II) é médium. Era um recado da sua cachorrinha que morreu.
A sucessão de fatos conexos me surpreendeu e maravilhou. Mal vejo uma homenagem dos amigos à minha cachorra, surge um pinscher encanecido, com glaucoma e médium, que por coincidência (se é que existem coincidências) mora no meu prédio, com uma mensagem psicografada. Ou, no caso, psicolatida.
Questões importantes também se apresentaram. Como os Robertos sabiam que eu tinha cachorra e que ela morreu? (Fofoca de condomínio, será?) Como Roberto I sabia que Roberto II a incorporou, a ela e não a outro ou outra? E como Roberto I sabia que ela queria me mandar recado? Aliás, como se distingue um cachorro médium de um cachorro com raiva, com fome, com mágoas profundas ou meio doido? Era tudo muito impressionante.
Meu ceticismo, no entanto, não se dobrou à avalanche de evidências:
— Não era a voz dela.
A gente conhece, afinal, a voz dos nossos bichos: tom, força, timbre, até as intenções nas variações. Eu não conhecia a voz de Roberto II. Roberto I se irritou e alçou a sua:
— O que importa não é a voz! O que importa é a mensagem!
— Mas eu também não entendi a mensagem.
Segurei a língua para não dizer que não falo idioma de cachorro.
— Aí já não é problema meu – respondeu Roberto I, me dando as costas e indo chamar o elevador.
Fiquei com a porta aberta ainda uns instantes. Quando percebi que a retirada era definitiva, disse:
— Muito obrigado. Boa tarde.
Ele não respondeu, já não sei se por ofendido, se por naturalmente rude, ou se porque, cumprido seu dever, já nada mais restava a dizer. Nem a latir.
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Comparativos:
mais chato do que filme da nouvelle vague;
mais aleatório do que mau-humor de mulher;
mais comovente do que fã do Neymar;
mais triste do que arroz de ontem;
mais assustador do que 2026.
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Botei esses comparativos acima numa rede social, e nela o amigo Alberto Barbour (tão excelente escritor quanto arquiteto) fez o seguinte comentário:
A boa notícia sobre a nouvelle vague é que o filme de celulose era caro, raro, e complexo. Imagina se esses caras tivessem câmera digital? Isto dito, sou fã do Neymar, como fui dos dois Gaúchos, do Imperador, e do R99 (kg). Comovente mesmo é ser fã dos Veiga da vida.
O amigo tem razão tanto em reconhecer o perigo dos celulares em mãos nouvelle vagais quanto em elencar o Neymar no rol citado, até porque, como eles, é um ex-jogador. Mas eu quero comentar um pouquinho sobre o “caso Veiga” e o problema que é usar a mesma palavra – no caso, “fã” – para falar de dois sentimentos, disposições ou apreciações muito diferentes entre si.
É aliás mais ou menos a mesma coisa que acontece com a palavra “obras” nas Escrituras: ela designa dois tipos radicalmente diferentes de ação e intenção, mas o uso da mesma palavra para os dois significados leva alguns a considerar uma unidade de sentido – e daí nascem polêmicas sem fim.
Sou palmeirense, o amigo sabe, e sou ainda essa coisa estranha que é o palmeirense ocasionalmente – muito ocasionalmente – racional. Racionalmente falando, nem sonho em pôr Raphael Veiga na mesma prateleira que os dois Gaúchos, R9, Neymar, Romário, etc. Não tem cabimento. Ele não tem esse pedigree. Olho para esses jogadores fenomenais com a admiração invejosa de quem sonha com um iate, uma Ferrari, uma viagem à lua, um date com a Marion Cotillard.
Raphael Veiga não é, obviamente, um iate, uma Ferrari, uma viagem à lua ou, cruzes, a Marion. Ele é, no seu melhor, uma lancha, um Honda Civic, um passeio na Bertioga, uma cerveja com aquela moça da academia que tem belas formas e unhas do tamanho de pinhões. Coisas OK, muito OK até, mas cá embaixo, cá embaixo.
O que então me faz fã do Raphael Veiga? É a admiração que a gente devota aos que, mesmo não sendo grandes coisas, fizeram coisas grandes com a camisa do nosso time. O tipo de gratidão que dedico ao Veiga é o mesmo que o santista dedicará ao Elano, que o corintiano dedicará ao Jadson, que o são-paulino dedicará ao Dagoberto. Caras cuja técnica, longe de ser pouca ou ruim, estava mais para o comum, mas que, com ela no seu máximo, fizeram por seus times coisas que jogadores muito mais dotados não fizeram. Para ficar no Palmeiras: Veiga fez mais pelo meu time do que o excepcional Edmundo – esse sim homem de primeira prateleira.
É um modo de ser fã bem diferente do modo de ser fã do Rivaldo, e devia talvez haver outra palavra para esse tipo de admiração. Mas não há, ou, se houver, não conheço. Sigo, portanto, sendo fã de Renato Gaúcho de um jeito, e do Veiga de outro. Como o amigo Alberto, sem dúvida, é fã do Darío Pereyra de um jeito e do Calleri de outro.
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Será que o tempo nos foi dado como um dom, para que vivamos tantas vezes quantas forem necessárias, até que recebamos uma dignidade capaz de merecer ser estendida até a eternidade?
A pergunta está na (sempre ótima) newsletter do Sérgio de Souza desta segunda-feira 26 (leia, leia).
A pergunta é boa, e é uma pergunta muito tranquila; não vem dela nenhuma ansiedade, mas sim – e é assim que a entendo – a calma de quem especula as coisas com sossego, com um talo de grama na boca, agradavelmente envolto pelo sol de maio (o melhor sol que há no Brasil).
Não tenho a resposta para ela. Fico com o Machado: matamos o tempo e o tempo nos mata; enquanto morremos, corremos atrás de perdão.
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O tempo como dom, o viver tantas vezes quantas forem necessárias me lembra de um caso frívolo. Ei-lo: há anos um grande amigo, já falecido, me falava de reencarnação e me urgia a tomar parte na religião dele, que nela crê e advoga seus pressupostos.
Respondi: “Calma, cara. Se a coisa for como você diz, não há pressa: fico aí, reencarnando todas as vezes que forem necessárias até eu me convencer. Vamos voltar a falar desse assunto de novo daqui a cinco mil anos, que tal?”.
Ele não gostou.
Que o amigo que me lê não misture minha tola boutade com a pergunta séria e boa do Sérgio. E volte na semana que vem, com tempo para mim e para as minhas silly talks. Até lá.
Obrigado pela referência, Orlando. É uma honra participar do seu espaço.
Muito bom kkkkkkk