21 Um amigo folgado; uma gorda abelhuda; e o telefonista de babel
Parece pouco, e, se for ver, é pouco mesmo
Amigo meu, casado com menina nissei, abandonou certa vez seu cargo na prefeitura e se mandou com ela pro Japão virar dekassegui. Lá no oriente ele não se deu bem; voltou para o Brasil uns quarenta dias depois de arruaçar por lá e, no dia seguinte, apareceu para trabalhar na prefeitura como se nada tivesse acontecido. Tendo que mantê-lo enquanto corria o processo administrativo, seus chefes, incrédulos e furiosos, puseram-no sozinho numa sala vazia. Ele matava o tempo comendo pipoca doce, lendo gibis e elaborando e reelaborando sua defesa (ele foi absolvido). Fingia se indignar com o escanteamento, mas estava era encantado com seu ócio oficial. Isso foi na primeira metade dos anos 90, sem internet nem smartphone, a vida na base dos impressos.
Eu disse que a sala estava vazia; menti: ele estava lá, junto com uma mesa velha, uma cadeira idem, e um ramal telefônico. Às vezes o telefone tocava: era alguém enganado, achando que ia falar com outra pessoa. O amigo fazia aquela voz elegante de recepcionista do inferno e dizia:
– Não, infelizmente não é ele(a)… Não, infelizmente não posso transferi-lo(a)… Sim, o telefone funciona, eu é que não sei onde fica ninguém, não sei o ramal de ninguém, estou isolado aqui, sem função, à espera da morte.
Era farsesco e dramático o amigo. (Aquele amigo; não você, amigo, que ora me lê; você, amigo, eu sei, é sério e sóbrio, você não abandona cargo na prefeitura.) Tinha outros vícios além desses, que não vêm ao caso agora. Felizmente o telefone tocava pouco e ele logo voltava ao nada que fazia antes de atender.
* * *
O amigo – isso, você – que me lê talvez ache que isso é um breve contra a vida de barnabé. Pode ser, pode ser; mas, na verdade, isso me fez imaginar um emprego público que consiste num sujeito sozinho numa sala (uma sala grande, de pé direito bem alto, em algum lugar antigo como o Martinelli, com janelões, frisos, portas altas, piso sujo de madeira) cuja função é atender telefonemas enganados e tentar prender as pessoas nas ligações pelo maior tempo possível.
É o Telefonista de Babel.
– E para que diabo serve isso?! – perguntará a vizinha adolescente do amigo (você), mexendo num dos quatro piercings que tem no nariz enquanto espia sua leitura por cima do seu ombro. Não há o que responder. Como ela saberá que isso só aumenta a barnabezice da coisa? Que um serviço inexplicável e sem utilidade aparente é uma espécie de estado da arte da barnabezice?
– Mas, em pleno 2021, quem é que ainda usa o telefone?! – dirá ainda ela, ela que não é romântica, ela que não ouve violinos no arrebol, ela que não usa mais o telefone. Pobre alma. E esse cabelo verde aí? Que marmota.
* * *
Aliás, como assim, em pleno 2021? O que se espera da plenitude de um ano? Além de abacaxis maduros, por exemplo? Ou jabuticaba, cuja temporada é curta? Em pleno 2021 se imprimem jornais e sua tia faz palavras-cruzadas com uma BIC. Por favor. Os telefones tocam, ué.
* * *
Mas o serviço do Telefonista de Babel. Toca o telefone. Ele atende.
– Boa tarde – diz voz de mulher. – Com quem falo?
– Com o Epaminondas – diz o Telefonista de Babel.
Não é esse o nome dele; é só um nome que ele dá para prender a pessoa do outro lado da linha pelo espaço de cinco sílabas. O nome dele tem que ficar em sigilo. Processos, ameaças, etc.
– Cooomoooo?
– E-pa-mi-non-das.
– Boa tarde, seu Pamimonhas, como vai o senhor?
– Ah… vamos levando, né?
Ela não pergunta levando o quê, de quem, aonde; ela não está na quinta série. Ela é uma profissional muito bem treinada. Ela só diz:
– Ah, que bom. Para sua segurança, tá, seu Pamimonhas, esta ligação está sendo gravada.
– Que maravilha. Grave, grave tudo. Posso cantar?
– Hahaha, melhor não, né? Hoje, seu Pamimonhas, qual é sua operadora de internet e de TV a cabo?
– Você quer dizer a minha pessoal, ou a daqui?
– O senhor não está na sua casa, sêo Pamimonhas?
– Não… estou no trabalho… E aqui a gente não pode ver TV, é proibido.
– Claro, em todo trabalho é assim, né?
– Sim. Lágrimas, sangue, suor... Condenação divina.
– Ah, pois é… E… e na sua casa, qual é a operadora?
– Nenhuma. Eu sou pobrezinho demais, não dinheiro para essas coisas.
– Ah, mas nós temos planos ao alcance de todos, sêo Pamimonhas.
– É mesmo? Que bom.
– Bom, né? E o senhor se interessa em saber quais são?
– Claro que me interesso.
Segue conversa de vinte e cinco minutos. Planos são expostos. Vantagens discutidas. Personalizações, acréscimos, degustações. O negócio não é fechado, mas o Telefonista de Babel pede para que o mantenham informado.
* * *
A voz do outro lado da linha é de homem. Áspera, grossa, impaciente.
– Alô. Jorginho?
– Sim.
O Telefonista de Babel não é o Jorginho. Ele nem sabe quem é o Jorginho. Para ele, Jorginho é nome de cachorro.
– Cadê o Jorginho?
– Sou eu. Fala.
– Jorginho… preciso de um cara.
– Um cara só?
– E eu que sei? Um, dois, dez, quantos precisar pra fazer o serviço, caraio!
– Ah, dois chega.
O Telefonista de Babel ainda não sabe qual é o serviço, mas sabe que todo serviço que use mais de dois sujeitos termina no bar, inacabado.
– Sei lá, que se foda. Vai ser na quarta de noite, entendeu? Às onze, que é a hora que ele chega.
O Telefonista de Babel não tem a menor ideia de quem é ele.
– Certinho. Onde?
– Na quebrada dele, Jorginho! Tá me tirando, caraio?
– Não sei, de repente você achou lugar melhor…
– Não tem, mano, não tem lugar melhor. É lá mesmo, é pus cara vê, entendeu? Pus cara vê que nóis vai buscá lá, entendeu?
O Telefonista de Babel já entendeu qual é o serviço. Talvez o telefone do mandante esteja grampeado. Talvez a polícia esteja rindo. Talvez não.
– Entendeu. Onze horas na quebrada. Vai dois, um é piloto de fuga. O carro é um Monza.
– Cê que sabe, foda-se. Quanto é?
– Depende.
– Depende do quê, caraio?
– Você quer que use o quê? 38? Metralhadora? Fuzil? Se quiser, tem granada, bazuca...
– Eita, acho que fuzil é a cara, hein?
– É?
– É.
A voz do outro lado fica meio sonhadora.
– Podicrê, mano… fuzilááááádo… da hora! Os cara na quebrada vai desacreditá, mano!
Combinam a entrega do dinheiro num shopping. Sessenta mil reais, antes da coisa feita. O Telefonista de Babel não vai. Talvez a polícia vá.
* * *
– Boa tarde. Falo com Osias Josires dos Santos?
– Sim, é ele.
“Osias Josires”, pensa o Telefonista de Babel. “Aposto que é da Assembleia.”
– Tudo bem, sêo Osias? Aqui é a Patrícia, gerente de contas do San Tan Dré. O senhor pode falar?
– Posso falar, sim. Posso falar, posso ouvir, posso tudo.
– Hahaha, que booooom, né, seu Osias? Sêo Osias, eu estou ligando porque nós temos aqui uma proposta ó-ti-ma pro senhor quitar sua dívida conosco e limpar seu nome!
– Que beleza. Mas olha: quanto é que eu tô devendo, mesmo?
O Telefonista de Babel ouve cliques: um computador, uma calculadora.
– Então… pelo meu registro aqui, sêo Osias, são sessenta e sete mil, duzentos e vinte e nove reais e trinta e quatro centavos. Na data de hoje.
– Amanhã aumenta?
– Amanhã não, mas o mês tá quase virando, né? E aí...
– E mui’dinheiro, caramba.
– Na época que o senhor renovou os juros estavam altos, né? Mas então: a nossa proposta é muito boa mesmo, e tem um desconto excelente inclusive porque a gente sabe que os juros e tal.
– Ah, verdade. Os juros matam.
– Nós temos consciência disso, sêo Osias, e é por isso que a gente conseguiu um desconto muito bom pro senhor quitar.
– Os juros são tipo aqueles índios que encolhem cabeças, que… como é que diz? Quando te arrancam os cabelos?
– Não sei dizer…
– Escalpelam. Arrancam seu cabelo, depois o couro, e depois te assam. Hahaha.
A voz da Patrícia soa cautelosa.
– É, o Copom subiu muito.
– Qual é a sua proposta?
Ela se anima, detalha cifras, cortes, prazos. Fecham o acordo: setecentos e cinquenta reais à vista. Ela manda o boleto para onde? O Telefonista de Babel dá o endereço de e-mail de um cunhado.
* * *
Amigo, se um dia você for atendido pelo Telefonista de Babel, trate-o bem. Ele se diverte mais do que você, decerto, mas, no fundo, como nós, só quer dinheiro, amor e um iate.
Nos vemos semana que vem?