210. Deferência; rebeldia; ativismo; amor; baixa renda; sitcom; Nick Mason; contribuinte; habilitação; padrinho; links
A mulher trinta anos mais jovem retribuiu o cumprimento de Laurindo com aquele tipo de atenção e deferência que faz a gente se sentir numa cadeira de rodas.
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Fulano era a própria rebeldia: era radicalmente contra tudo o que não fosse governo.
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O ativista se olhou no espelho de manhã e começou a chorar: via o rosto de um sujeito cem por cento inofensivo e bom.
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Vendo as páginas de um jornal antigo, dei de cara com um anúncio da Golden Cross, que vendia planos de saúde lá nos anos 80 e hoje, consta, é parte da Amil. Vieram aos meus ouvidos, ou à alma, à memória dos meus ouvidos, todas as vezes em que escutei a pronúncia Gônden Clós. Foram muitas.
Eu amo o Brasil, mas, sei lá, parece que não adianta muito.
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Esse “l” à Cebolinha, aliás, é muito coisa de baixa renda. Basta ver a turma falando em galfo e chamando filha de Kétleyn (eles querem dizer garfo e Kathryn).
Aliás, qual o problema com Catarina? Você pergunta e respondem, os baixa renda, que é nome de velha.
Nem quero imaginar o que vai estar na moda lá por 2060, quando Kétleyn for também nome de velha.
Eu aliás venho de extração baixa renda. Mas, no meu tempo, a escola tinha pena de nós e nos ensinava o suficiente pra gente, querendo, deixar de ser. Hoje…
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Ideia para episódio de sitcom de vinte minutos: uma família boliviana que entra, por acaso, na parada gay.
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Havia, no começo nos anos 80, numa galeria da Faria Lima de nome Calcenter, um cinema que passava filmes com shows de rock, à maneira do Carbono 14 (hoje os dois são defuntos). O nome do cine era, veja que surpresa, Rock Show. Lembro que, num sábado de 1983, pouco tempo depois que meu pai morreu, fui com o falecido Pantelis (o Grego) ver o Live at Pompeii, do Pink Floyd – esse que está de volta aos cinemas, e que eu recomendo ao amigo que assista se gostar da banda na fase imediatamente anterior ao Dark Side of the Moon (aliás, o filme tem cenas feitas durante a gravação desse disco).
Naqueles meses sombrios e esquisitos que se seguiram à morte do meu velho, o Pantelis foi o meu amigo mais próximo. Estávamos sempre juntos, indo a um lugar ou a outro; da maneira meio áspera dele, diria que cuidou de mim um bom tanto. É alguém de quem sinto saudades grandes. Teve morte ignominiosa. Pantelis é transliteração simples das letras gregas; quando estudei um pouquinho de grego, descobri que “nt”" soa como “d”; então a pronúncia certa do seu nome é Padélis.
Ficamos muito impressionados com Nick Mason. Nunca tínhamos visto baterista tão bom – é verdade que tínhamos visto poucos bateristas até então. Foi uma impressão que ficou, daí minha surpresa quando eu soube que o baterista em Mother, do disco The Wall, foi Jeff Porcaro, porque Mason não acertava o tempo.
Vi há pouco uma entrevista dele, Mason, acerca de Syd Barrett, o guitarrista que enlouqueceu via LSD. Cavalheiro inglês, engraçado, bem falante, agradável. Lamentou não ter feito mais por Barrett, e disse que, menino de tudo, mal saberia mesmo o que fazer.
Ficamos também impressionados com um cachorro que cantava – uivava – um blues. Fazia frio naquela tarde de 1983. Voltamos de ônibus para o Brás. Hoje em dia é tudo centro estendido, mas naquele tempo não era, e como parecia longe. Tínhamos 16, 17 anos. Não sabíamos nada; eu vivi mais para saber ainda menos.
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Theodore Dalrymple diz, em algum lugar, que a função da cadeia não é ressocializar ninguém. A ressocialização, se vier, será ótima, mas é um bônus: a cadeia serve para proteger as pessoas dos bandidos, apartando-os delas.
No Brasil, porém, muita gente – imprensa, governo, esquerdistas e sua claque, até juízes – acha que haver muitos presos é um problema maior do que haver muitos roubos, muito tráfico e muitos assassinatos.
Um dos argumentos dessa gente é uma conta segundo a qual um ladrão preso custa três mil reais por mês ao erário. É caro, como não? Mas nunca vi a conta de quanto um ladrão solto custa aos que ele rouba. Nem nunca vi a conta de quanto o próprio governo perde quando um pagador de impostos é morto.
A verdade é que poucos cidadãos dão três mil por mês ao governo em impostos, então, pelas contas da burocracia, é mais barato soltar um assassino do que proteger um balconista de farmácia ou uma atendente de telemarketing.
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Não sou habilitado em muitos sentidos e para muitas coisas, e sou francamente inábil em outras tantas, mas quero dizer que não sou habilitado no sentido mais comum da palavra. Isto é: não tenho carteira de habilitação, não sei dirigir.
Sinto muito mais falta e necessidade de outras habilidades (como a de ganhar dinheiro, por exemplo), mas não há como negar: é um senhor handicap. Resultado das circunstâncias de uma vida que tem sido talvez por demais circunstancial. Pois houve ocasião em que quis me habilitar e tive tempo, mas não dinheiro. Depois, tive o dinheiro, mas não o tempo. Depois ainda, e por um período longo, não tive nem um nem outro. Hoje o que não tenho é coragem, paciência, reflexos e fosfato para decorar leis e placas de trânsito e seus significados. De sorte que, salvo reviravolta improvável, vou morrer peão.
(A primeira acepção de peão no dicionário é “pedestre, pessoa que anda a pé”. As outras acepções – peça de xadrez, boiadeiro, trabalhador braçal, pobre em geral – são secundárias e posteriores. Peão vem do latim pedonis, aquele que tem pé grande, pezão. A propósito, calço 43.)
Mas as pessoas têm e gostam de carros, e a gente acaba, naquela osmose social, aprendendo sobre eles mais do que se julgaria capaz. Por isso sei que a primeira é a marcha mais forte, e sei que, quando se acelera, o carro “pede” a mudança de marcha (como ele pede, e como o motorista ouve ou percebe o pedido, não sei; para mim é coisa vizinha da bruxaria ou da mediunidade, mas tantos são os que confirmam o pedido que submerjo e me submeto aos testemunhos). Sei também o que é a “reserva” e até identifico um ou outro daqueles barulhos que o motorista nunca sabe o que é (nem eu). E sei que é preciso “dar seta”, e que lugar de lerdo é a faixa da direita, e outras coisinhas assim – que ocupam lugares do meu cérebro onde deviam estar uns versos do Jorge de Lima ou do Camões, ou o entendimento, até agora fugidio, do que sejam os “universais”.
A memória é caprichosa, decide o que quer guardar, e guarda muita coisa que só ela sabe o que é, por que, para que. Mas é sábia: a gente é que demora para entender que toda aquela tranqueira acumulada faz de nós o que somos, ou o que viramos.
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“Quem tem padrinho não morre pagão”, diz um ditado brasileiro que não fala de religião, mas sim de pistolão ou Q. I., quem indique (para cargo, lugar, sinecura, bico, job). Talvez o tenhamos importado de Portugal, onde o negócio também sempre foi meio assim; a própria natureza da coisa, aliás, depõe contra a nossa capacidade de ser autóctones. Mas não subestimemos, entretanto, o caráter particularmente mau do nosso mau caráter.
Em todo caso, cunho outra frase: quem tem amigos bons não morre burrão. Por amigos bons recebi a indicação de que almas boas legendaram, no tutubas, o documentário seriado de Kenneth Clark chamado Civilisation, de 1969, que é coisa esplêndida e que pode ser acessado clicando aqui. Pode ser preciso ativar as legendas, que aliás não são primorosas; há errinhos irritantes aqui e ali. Mas quem as fez é abnegado, não ganhou nada em troca e merece toda a nossa gratidão. Vai lá, amigo: são treze episódios de cinquenta minutos, o meio-dia mais bem gasto da sua vida recente.
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E por falar, já não digo em paixão, mas em links, aí está um para o livro recém-lançado do Géza Kovács, que tem prefácio deste seu criado e está mais barato do que um pingado no boteco da esquina (você não tem desculpa, amigo, vai lá e compra). E outro para a minha crônica nova na Crusoé. Clique, leia, e me reencontre aqui em uma semana, se uma semana a mais sobre a terra nos for dada. Até lá.
Ótimo, como sempre. Tange alternadamente cordas da melancolia, da nostalgia, da comédia...
"Fulano era a própria rebeldia: era radicalmente contra tudo o que não fosse governo.".Ah,esses jovens rebeldes.