213. Merréis; citação; idolatria; rei; viagem; Pomerode; retórica; briga de galo; Brian Wilson
Sou tão velho que conheci gente que ganhou, gastou e viveu em mil-réis. Ou em merréis, na pronúncia dessa mesma gente da velha São Paulo, a qual, é claro, também engolia alguns esses - duzento réis, milequinhento réis.
O unitário milesimal dos réis era o real. Curioso que o real esteja aí de novo e nós chamemos seu plural de reais e não de réis.
Que pomposos ficamos.
* * *
“Entro no banheiro, e que susto! O Lula está lá dentro!
Ponho os óculos e, ufa, tudo normal. Era o vaso.”
Olivério Saccomani, O homem que confundiu sua privada com o Presidente da República, p. 13.
* * *
Na casa de um alemão, na Patagônia, Bruce Chatwin se referiu ao Rei Luís II da Baviera como “o louco”, e o alemão se ofendeu: “Ninguém chama o rei de louco na minha casa!”.
Bem, na minha, qualquer rei ou vereador pode ser vituperado à vontade, inclusive com os palavrões mais cabeludos. Qualquer um mesmo.
Mas vocês vão ver, aqui e ali nestas redes, uns cartazinhos de pessoas que se sentem, com relação a seus políticos de estima, do mesmo jeito que o alemão com seu rei louco.
“Falou mal do Fulano, porta da rua é serventia da casa.”
Tudo bem, vem pra minha: a gente bebe café forte e xinga todo o mundo.
* * *
A propósito: Luís II reinou na Baviera de 1864 a 1886. Bruce Chatwin visitou o alemão, salvo engano, em 1976, e o luisista ainda estava à flor da pele. A história do encontro está no livro Na Patagônia, muito divertido, que eu já recomendei aqui e torno a recomendar.
Quanto ao rei: é mais fácil amar quem a gente não conhece de perto, sim. Ou quem morreu há noventa anos.
* * *
A respeito de quase-sessentões e suas urgências urinárias: elas têm que entrar nos cálculos de quaisquer deslocamentos que o indivíduo faça. É uma boa introdução ao mundo fascinante da logística: como estar perto de um banheiro a cada tantas horas ou minutos quando se vai de um lugar ao outro. Estou nessa fase.
No feriado enfrentei dezoito horas de viagem de ônibus (nove indo, nove voltando) entre São Paulo e Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, no rumo da simpaticíssima cidade de Pomerode. Uma das minhas preocupações era justamente a posição da minha poltrona em relação ao banheiro do busão (sou de São Paulo; aqui se fala bolacha e busão): viajando à noite, tinha e tenho pruridos de incomodar o caro passageiro, o belo tipo faceiro que esteja ao meu lado pedindo licença a cada hora e meia mais ou menos para ir mijar. Daí que escolher a posição da poltrona – no corredor – é fundamental.
Na ida, fui ajudado pelas paradas: uma depois de duas horas, outra depois de mais três, e as últimas quatro foram passadas em sono inquieto, de modo que cheguei a Jaraguá do Sul ainda seco e apresentável. Na volta, fui ainda mais ajudado pelo sono (mas as paradas foram providenciais, visto que não se sai de Pomerode sem pelo menos meio litro do magnífico chope Pomerânia trafegando no trajeto estômago-bexiga-encanamentos).
Fazia tempo que eu não encarava longas viagens de ônibus. Eu tinha esquecido de muitas coisas acerca dessas viagens. Uma delas é que nos ônibus vão famílias: pai, mãe, crianças, bebês. E seus apetrechos: cobertores, almofadinhas ou travesseirinhos, mamadeiras, guloseimas em pacotes barulhentos, pedidos de silêncio, advertências entre dentes (e, o que não havia antes, celulares com tiquetóque e instagrão). E que a logística e a acomodação familiar – quatro ou cinco pessoas em dois bancos, colo, movimentação de pernas e braços, ajeitamentos – é altamente volátil, sujeita a diversas alterações e rearranjos durante o trajeto, tudo ampla e minuciosamente debatido, nem sempre aos sussurros, entre os consortes e suas crias.
Uma família assim se sentou nas poltronas à minha frente. E aconteceu outra das coisas que eu tinha, graças à misericórdia divina, esquecido: oito em cada dez bebês embarcados em ônibus enjoam. E, quando enjoam, vomitam. E, antes, durante e depois de vomitar, choram.
Nessa ordem se deram os fatos, de modo que parte da minha viagem de ida foi ao som de choro de bebê, aroma de vômito e movimentação não muito frenética de limpeza.
Não criei caso. Sou pai; já aconteceu comigo coisa parecida; é justo e é da ordem natural das coisas que eu tenha passado de incômodo a incomodado. E a certa altura, depois de uns 40% do trajeto, as coisas se ajeitaram.
Também é da ordem natural das coisas que as crianças que dão trabalho hoje aos pais e mães tenham amanhã trabalho com os mesmos pais e mães, e paguem com as mesmas notas e moedas o serviço recebido. Mas isso é lá com eles e com o futuro; a mim coube dormir pouco, tampar o nariz e, compreensivo, compreender.
* * *
Pomerode, onde fui fidalgamente recebido e acomodado pelo casal Petry, é pequena e no bairro em que moram esses meus amigos não há registro, nos últimos 150 anos ou coisa parecida, de um assalto a residência. As cercas são baixas, quando as há; os muros, simbólicos, quando os há; as janelas não têm grades; os cães são amigos, ornamentais, e o maior mal que fazem é às galinhas dos vizinhos. Também simbólico é o transporte público: todos têm motocicletas, bicicletas, carros. E todo o mundo fala alemão, e te xinga em alemão quando percebe que você spricht kein Deutsch, não fala alemão. Os serviços de entrega, parece, são desconhecidos: se você encomenda alguma coisa, tem que ir buscar. O sotaque é de erres fracos: come-se mareco e não marreco, aroz e não arroz. Mas come-se muito bem, mareco, eisbein (cozido ou assado), mixes de salsichas, chucrute, pato e diferentes partes do porco, e língua de boi (língua é uma delícia, amigo; te juro). Bebe-se muito bem também. E se fortifica a diabetes ainda melhor: terra do strudel, da torta de bolacha, dos altamente cacauados chocolates Nugali. E há uma rua dita dos atiradores, onde há, bom, clubes de tiro e, pois, atiradores. Essa é a cidade em que uma repórter analfabeta viu certa vez “Heil” escrito num telhado, teve um faniquito e chamou a cidade e todo o estado de Santa Catarina de filonazista – pobre família Heil, dona do tal telhado.
Vale a visita, amigo, mas infelizmente você vai ter que se virar com pousadas e hotéis; a chez Petry é privilégio meu.
* * *
Em Madame Bovary, Flaubert descreve uma feira rural sem nunca ter visto nenhuma; quando viu, depois de ter escrito, se deliciou com o tanto que acertou em sua descrição. Eu, que não aspiro nem às honras nem às encrencas de ser flaubertiano, fico sabendo que o Lula discursou em tal ou qual malfadada ocasião e sei, como Flaubert, que ele começou umas frases com “Nós não podemos mais...”, que terminou outras com “neste país” e, no meio de várias, soltou um “sabe?” retórico.
* * *
Consta que quem acabou com as brigas de galo no Brasil – ou antes, quem as tornou completamente ilegais; ninguém nunca conseguiu acabar de vez com elas – foi Jânio Quadros, num decreto de 1961. Ele quis também acabar com as corridas de cavalos e os biquínis – serviço que podia ter sido entregue ao tempo, dado sejam duas coisas que, por si sós, à parte quaisquer decretos, estão encolhendo espontaneamente a cada dia.
Ensina ainda a página da Wikipedia dedicada ao assunto que, na verdade, as rinhas eram proibidas no Brasil desde 1934, por Getúlio Vargas, juntamente com as touradas, e tornadas contravenções penais desde 1941 (como o jogo do bicho, aliás), pelo mesmo Getúlio. Em 1961, Jânio só fez endurecer a parada.
Bem: por razões alheias às rinhas de galo, fui à Hemeroteca da Biblioteca Nacional e lá, espiando a edição de janeiro de 1944 da revista O Cruzeiro, dei, no scan mal-feito, com páginas da mesma revista da edição de 28 de outubro de 1944, que trazia uma reportagem sobre uma briga de galos realizada na cidade do Rio de Janeiro.
Assinada por Neiva Moreira e fotografada por Celso Muniz, a reportagem dá relato da briga entre os galos Venâncio Aires, cujo dono era o deputado Seabra Filho, e Guararapes, propriedade do banqueiro (ou industrial, ou ambas as coisas) Edgar Pessoa de Queiroz. A luta aconteceu na rinha que havia nas dependências do Centro Esportivo Carioca, próximo à Quinta da Boa Vista e ao Maracanã – endereço, creio eu, não dos piores à época. A luta foi fotografada, os presentes posaram com gosto para a objetiva. Entre os outros grandes nomes da política e das finanças que lá estavam contava-se o próprio dono d’O Cruzeiro, Assis Chateaubriand. E a menina, punho aguerrido e fita no cabelo, Teresa Bandeira de Melo. Donde se tira que o status de contravenção das rinhas desde 1941 não era levado nem um pouco a sério.
Saiu vencedor o Guararapes; pelo que a reportagem dá a entender, Venâncio Aires deixou a vida na rinha – usou-se a expressão “tombou exangue”, isto é, sem sangue – depois de ter os olhos furados pelo adversário.
O texto da reportagem trata o negócio como um esporte – pois afinal a luta não teve lugar num autodenominado Centro Esportivo? – e flerta até com o entusiasmo. Dá as nomenclaturas técnicas das funções e dos auxiliares, entrevista pessoas, colhe informações (inclusive históricas), relata preparativos, exalta a coragem e o denodo dos “preliadores” ou “combatentes”.
Há quase oitenta e um anos tombava, portanto, Venâncio Aires (o galo; o jornalista republicano e abolicionista morreu antes, em 1885, e seu Aires era com “y”, Ayres – tal qual, na origem, o Conselheiro). Na ocasião, a tiragem de O Cruzeiro era de cerca de 300.000 exemplares por semana. Já fomos um país interessante.
* * *
Semana passada não tive tempo de falar sobre Brian Wilson, que morreu um dia antes da newsletter ir ao ar. Falo agora.
O primeiro disco que tirei da prateleira na loja Tower Records de Shibuya, Tóquio, em 1996, foi Pet Sounds. Eu entrei lá só para comprá-lo (acabei ficando horas, porque aquilo é de matar, sete ou oito andares só de discos, de tudo o que é gênero e artista – a loja, aliás, ainda existe). Peguei a versão remasterizada daquele tempo (já devem ter saído outras), que ainda está aqui em casa até hoje – CD americano, não japonês. É o disco, e é Brian Wilson de ponta a ponta, o pináculo, o ápice do seu gênio. Com perdão dos que preferem as (muito boas) Smile sessions.
Lá estão Sloop John B, Don’t talk (put your head on my shouder), Caroline no e uma das três maiores canções pop de todos os tempos (não importa quais as outras duas), God only knows. Vai lá, ouve essa e veja se sua vida ainda vai ser a mesma depois do que acontece a partir de 2:04.
Adicionalmente, lembro com prazer perverso da pessoa, fã de Mariah Carey, que uma vez me disse que Wouldn’t it be nice?, a pop song quase perfeita que abre esse disco, era “cafona”.
Há sabores e sabores nesta vida, amigo, e saboreadores de todos os tipos também. Pet Sounds – cafona, cerveja choca, Old Eight para alguns – é single malt, é Napoleon Brandy, é camembert, é top para mim. E será para você, que, tenho certeza, vai passar esta semana ouvindo esse disco sem parar, me agradecendo muito esta dica. Até porque você não precisa de mais nada para entender quem foi e nunca mais esquecer Brian Wilson.
Dito tudo, au revoir, à revoada.
Nice always superb put all this stuff in book ,