22. Terror acreano - kinema - a dreaded rainy day
Keats and Yeats were on my side, mas não os citei
Ao ver que um filme acreano de terror trata a Caipora como um djinn, Edmonton Justino Guarani-Kayowáa solta um urro de agonia – um urro que soa um pouco como uma bexiga esvaziando –, faz login no tuíter e se prepara para denunciar, em temos fortíssimos, o absurdo culturalmente colonizado contra o encantado e a “vergonhosa omissão do cinema de terror nacional em fazer um gore honesto contra a extrema direita”. Quando pousa as mãos no teclado para dar início ao bom combate, porém, eis que saem da tela do computador umas mãozinhas gordas e rosadas, mãos de nenê, que agarram seus pulsos e o impedem de digitar.
Edmonton solta novo urro – outra bexiga esvaziando – e luta, com todas as forças que tem, para se libertar. Debalde: o nenê é mais forte. E do monitor brota o rostinho rechonchudo e aureolado de uma criança. É um querubim.
– Menino Edmonton, você não está sendo legal – diz o querubim, com uma daquelas vozinhas que despertam o canibalismo feminino.
Os pulsos de Edmonton começam a arder. Bolhas se levantam em sua pele.
– Você é chato demais, menino Edmonton – continua o querubim. – Perde um tempão escrevendo besteira na internet.
Edmonton sente o ardor em sua pele subir braços acima, e vê com horror a pele deles começar a derreter. A dor é tremenda. Ele inala a fumaça que sai de sua pele queimada: cheira a pururuca.
– E entende as coisas tudo errado. Filme de terror não é a oposição do amor destemido da esquerda e das pautas identitárias contra os monstros do grande capital. Filme de terror é só alma penada, monstrão e diabo fazendo coisa ruim pros outros, menino Edmonton.
O fogo agora percorre todo o corpo de Edmonton: ele queima todo, por fora e também por dentro: há brasas no seu rosto e no seu palato, no seu umbigo e nas suas tripas, no seu peito, na sua garganta, nas batatas das suas pernas. Começa a sair fumaça das suas orelhas.
– Quer saber? Deixa para lá, menino Edmonton. Seu tempo acabou. Até porque eu vou acabar deslocando o maxilar se tiver que ficar falando “menino Edmonton” mais vezes.
Os olhos de Edmonton estouram, seu ventre se abre. O sangue que escorre dos seus poros vira chouriço na mesma hora, suas roupas entram em combustão.
– Você tá indo pro inferno, viu? – diz o querubim, soltando os pulsos que em segundos são só ossos queimados.
Quando os amigos de Edmonton chegam para debater a situação nacional e propor alternativas de resistência, encontram o esqueleto e o fedor de carne torrada. O som que fazem é o de várias bexigas esvaziando. Nesse estado de grã comoção, ligam para a polícia. A moça do 190 não entende nada do que dizem e desliga, irritada: ela acha que tem umas crianças soprando cornetinha no telefone.
* * *
Em 1972, São Paulo era para mim “a cidade”, o centro velho. Saíamos eu e meu pai da Maria Marcolina, no Brás, aos domingos, cerca de oito e meia da manhã. Íamos a pé. Kinema. Subíamos a Rangel Pestana, passando pelas porteiras, que naquele tempo ainda existiam (acho que duraram até 1978), e logo à esquerda havia o Cine Piratininga, “a maior sala do Brasil” (que já foi estacionamento e hoje acho que é só a casca do edifício). Antes, no Largo da Concórdia, à nossa direita havia um terreno baldio onde antes ficava o Teatro Colombo, no mesmo lugar em que hoje se ergue a Caixa Econômica; e a uma quadra, na Firmino Whitaker, esquina com Saião Lobato, o cine-teatro Oberdan (onde Bill Halley e seus cometas tocaram numa tarde de sábado, nos anos 50, e a platéia ainda achou forças para quebrar umas cadeiras; hoje é uma loja da Zelo).
Se a gente descesse a Celso Garcia no sentido do Belenzinho, teríamos a cinelândia do Brás diante de nós. Em frente à Pirani (falida em 1972, com o incêndio do Andraus – em 1989 ainda havia, pendurado numa parede, um anúncio de “baralhos a Cr$ 3,00”) havia o Fontana, duas salas, Ouro Branco e Ouro Preto (hoje é igreja neopentecostal). Na mesma calçada da Pirani, quase esquina com a Bresser, havia o Cine Universo, onde vi com a minha mãe, num sábado frio, “Marcelino Pão e Vinho”, e depois o primeiro Super-Homem, aquele com o Christopher Reeves. Mas antes do Universo, na esquina da Carlos Botelho com a Costa Valente, havia o cine-teatro onde era gravado o “Astros do Ringue”, o Brás Politheama, do qual restaram, por muitos anos, um balcão de aspecto suntuoso e uma lira estilizada no telhado (hoje, claro, não resta mais nada). É um posto de gasolina.
Passando a Bresser, e do outro lado da avenida, estava o Cine Roxy. Hoje é um dos... não sei bem como chame: templo, talvez?, da Igreja Universal, que aproveitou e arrasou todo o lado esquerdo do quarteirão para fazer uma coisa que devia ser igreja e parece um cassino. E no quarteirão seguinte, esquina com João Boemer, havia o infausto Cine Brás, que me lembra muito uma certa cena do Nuovo cinema Paradiso e que, depois de cinema, foi casa noturna e bailão. No seu terreno está hoje o jardim, ou quem sabe uma das colunas dos muros do estranhíssimo Templo de Salomão do Edir Macedo.
Mas nós não descíamos a Celso Garcia, e sim subíamos a Rangel, pra “cidade”. Passando a Praça Clóvis, geralmente entrávamos na Roberto Simonsen onde, quase esquina com a Venceslau Brás, do ladinho mesmo do Solar da Marquesa, havia o Cine Texas, que também foi transformado em estacionamento. Dali contornávamos a Sé e havia duas opções: Rua Direita, com o Viaduto do Chá, ou XV de Novembro, passando ao lado do Martinelli. Se o domingo fosse sem pressa, descíamos a Direita, passávamos pela Praça do Patriarca, ganhávamos o Chá e entrávamos pela Barão de Itapetininga, onde havia o Cine Barão, na mesma galeria que abrigou a saudosa Wop Bop Discos (já não há mais nenhum dos dois). Se, porém, escolhêssemos atravessar o Anhangabaú sobre o Buraco do Adhemar, teríamos quase de frente pra nós o Cine Cairo (fechado) e, já na São João, quase em frente aos correios, teríamos à nossa esquerda o Cine Saci (posto no chão). Ainda não havia as salas dos cines Avenida e Las Vegas, que talvez já não existam mais.
Então cruzávamos pelo Largo do Payçandú e, esticando o pescoço, víamos à direita o suntuoso saguão aberto do Cine Paysandu (escrito erradamente, que já foi bingo e hoje, aposto, é neopentecostal também). Podíamos dali entrar na Conselheiro Crispiniano e passar diante dos restos do luxo do Cine Marrocos (em cuja passarela, no quarto centenário, vários hollywoodianos de sucesso desfilaram, e que foi invadido por sem-teto há algum tempo). Se, entretanto, fôssemos adiante na São João, à esquerda estariam, pela ordem, o Art Palácio (fechado com tapume “artístico”), a saída das três salas do Olido (que ainda resiste, com uma, pertencente à prefeitura) e, passando a Dom José de Barros, o Ritz, com seu salãozinho turco (ou de chá, com cadeirinhas de ferro – não sei o que tem lá hoje). Na Dom José, só alguns metros pra cima, havia e há o Cine Dom José (onde, numa inesquecível semana santa em 1983, havia três cartazes de filmes – à direita, “As C… de C… Que Dão O C…”; à esquerda, “Pervertidas e Depravadas”; e, no meio, a “Paixão de Cristo”).
Depois atravessávamos a Esquina do Caetano tendo à nossa esquerda o Ipiranga (fechado) com suas duas salas, o Marabá, com sua imensidão e o balcão (parece que hoje é dos tais multiplex), e o Cine República (fechado). Se voltássemos pela Ipiranga, à direita, chegaríamos ao Cine Windsor (fechado), na esquina dela com a Rua do Boticário; se a gente seguisse para a esquerda, tinha chance de ir parar no Cine Copan, em forma de anfiteatro e que hoje abriga mais uma igreja (não sem antes passar pelo Cine Metrópole, escondidinho naquela galeria que dá na Praça Dom José Gaspar – fechado – ou pelo Cine Coral, na Sete de Abril – foi bingo e hoje deve ser outlet). Ou, se contornássemos a Praça da República e descêssemos a Vieira de Carvalho, sairíamos no Largo do Arouche, bem perto do Cine Arouche, onde, no inverno de 1990, acompanhado por um LP do Sam Cooke, vi o “Cinema Paradiso” e chorei do modo mais abjetamente carcamano. Mas não; nós seguíamos a São João no rumo do cine Metro e sua matinée com Tom & Jerry e Pato Donald.
Podíamos continuar andando pela avenida e ver, mais à frente, o Cinespacial, redondo e com quatro telas (fechado), e depois o Comodoro, com sua tela de Cinerama (fechado), e ainda um pouquinho adiante o Regina (consta que nem o prédio existe mais). Mas não íamos. Ficávamos no Metro (que hoje também é igreja), sem pipoca nem refrigerante (que eu nem sabia que haviam à venda). Eu era menino de 5 anos, fitava vidrado a tela onde o gato levava pauladas estrondosas de um cachorrão e gritava escandalosamente, sentindo a dor do bicho e esperando meu pai rir pra rir depois. Meu pai, um sisudo senhor oriundo que acreditava nas ruas e ia de paletó a uma matinée dominical. Que começava por volta das dez, então era a conta certa de um homem de cinqüenta e dois anos e um menino de cinco andando uma hora e meia por avenidas e ladeiras.
Se fôssemos à avenida da Liberdade, chegaríamos ao Cine Niterói, onde passavam todas as produções japonesas que importavam (e todas as que não importavam também – fechado). Ou na R. Silva, ver o prédio neoclássico do Cine Liberdade (que é uma loja de cosméticos). Mas era raro irmos lá; íamos mais ao Pari, esquina da João Teodoro com a Avenida Vauthier, onde havia o Cine Rialto (na esquina diametralmente oposta funcionou, anos depois, O Templo, boate punk da primeira hora). No Rialto vi, em 77, “Guerra nas Estrelas” e alguma coisa do Mazzaropi com minha mãe, um que tinha aquela música sertaneja que rezava assim:
“Nestes versos tão singelos / minha bela, meu amor, / vou cantar para você / o meu sofrer, a minha dor / Eu sou como o sabiá / quando canta é só tristeza / Dá vontade de chorar”.
Dava mesmo, e o povo chorava direitinho. De cinema o Rialto virou casa de danças do Zé Bettio, forró, e finalmente loja de pneus. Hoje não sei mais o que é.
Minha cidade é cruel. Nem sei se é mesmo uma cidade e não prédios e ruas que brotam a esmo e estão perenemente de costas uns pros outros, esquecidos, isolados, sem relações. Ruas que não se falam, prédios que não se bicam, caminhos mudos. Deve ser uma besteira a gente se entristecer com a morte de um cinema, com a desaparição de uma sala escura onde apertamos um peitinho, onde roubamos um beijo de uma menina e depois saímos à rua, todos cheios, quase gritando “eu beijei uma mulher”, ou onde simplesmente ficamos de cabeças encostadas chupando balas Van Melle. Tudo muda na cidade cruel sem mais lamentações. As casas em que nascemos viram pó; as escolas se transformam em lojas, as lojas em prédios, os prédios em nada. Andamos por ruas quase escuras que na verdade não conhecemos, e que não nos conhecem, ou que, se um dia nos conheceram, hoje já se esqueceram de nós.
Tudo se move na cidade cruel. Nós nos movemos. Kinema.
P. S.: isto é de 2001, e já reciclei algumas vezes, e agora de novo – peço perdão ao amigo que já o há de ter lido antes; esta semana foi difícil.
* * *
Veja o amigo que, nos cemitérios, até os cães são meio deprimidos:
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Enquanto esperávamos a terra acabar de cair sobre o esquife do meu sogro, minha filha apontou para uma coisa no chão:
– Credo! Pisei numa costela!
Olhei e era mesmo. Quando se enterram corpos em caixões vagabundos e direto na terra, como na Vila Formosa, isso acontece. Tentei enganá-la, como se ela tivesse seis anos.
– Nada, isso aí é um ramo que caiu da árvore.
Mas ela tem vinte e seis.
– Não é, não. É duro. É costela.
Entramos em casa descalços, segurando os sapatos. O amigo, a esta altura, já sabe como é.
Salvo sinistro, nos vemos semana que vem.