24. Cyrus Jones - velhice - italianas - a outra tia - la Grimaudo
Eu podia ter revisado mais, penteado mais, mas vai como saiu.
Não sei como ainda não ocorreu a todos, e inclusive a ele, que o Cyrus Gomez seria muito mais feliz treinando os juvenis do Ferroviário Atlético Clube do que se candidatando à toa à presidência das reses públicas. Todo o mundo louvaria a capacidade dela de impor disciplina, especialmente se lá de vez em quando quebrasse a cara de algum lateralzinho mais vagabundo.
E ninguém se importa se o “professor” toma umas e outras, pita uns cigarrinhos, tem umas crises de narcolepsia, tem família bagunçada, peida alto, etc.
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A vecchiaia é, no meu estágio atual, um atordoamento leve, cheio daqueles sustinhos de quem acorda inesperadamente de um sono não muito pesado – o sono de quem, por exemplo, adormece ainda na mesa do almoço.
Um desses sustos me veio agora, quando percebi que ainda sei de cor a letra de Love ain't no stranger.
Shame on the younger me.
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Top 14 italianas (eram top 5, mas cinco só, amigo? E por que não inteirar as 15? Sei lá, aceite o mistério):
1) Silvana Mangano;
2) Sofia Loren;
3) Monica Bellucci;
4) Gina Lollobrigida;
5) Isabella Rossellini;
6) Ornella Muti;
7) Nicole Grimaudo;
8) Claudia Cardinale;
9) Virna Lisi;
10) Caterina Murino;
11) Alida Valli;
12) Stefania Sandrelli;
13) Marina Berti;
14) Monica Vitti.
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Falei noutro dia de como morreu minha tia Guiomar, e comecei a falar de tia Nenê e de seu apelido muito, muito inadequado. Por quê? Segue uma história.
Quando meus pais se casaram, compraram os móveis de seu dormitório na Sears, cuja loja da Praça Oswaldo Cruz, imensa, é hoje o Shopping Pátio Paulista. Compraram-no segundo prática que ainda existe, a do conjunto, em que cama e armário seguem o mesmo padrão. Bem: na hora de entregar, já com os montadores, viu-se que a cama era de um padrão, o armário do outro.
Tia Nenê, que não era a dona da mobília, teve tal ataque de fúria que pôs os dois montadores em fuga. Em fuga: largaram lá até as ferramentas. Rolava no chão, como epilética, como a sogra do Mattia Pascal.
Meu pai e meus tios atribuíam esse temperamento aos males da solteirice.
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Ora, a lenta agonia cancerosa de tia Guiomar impressionou tia Nenê, que era a mais velha das duas. A peregrinação baratinada das irmãs solteironas por charlatões vários (cirurgiões espíritas, massagistas, pastores neopentecostais, macumbeiros, Seicho-no-Iê e terapeutas holísticos) fez com que a tia Nenê conseguisse manter, ao mesmo tempo, a fé mais fervorosa e a desconfiança mais fria. Siamesamente ligadas, incões, fé e desconfiança aumentavam juntas a cada novo tratamento fracassado que impunha a tia Guiomar.
Combateu com a morte um combate feroz. E jamais se rendeu à idéia do insondável: a morte de tia Guiomar parecia a ela um adversário de tribunal, um litigante contra quem se podem apresentar argumentos e que pode ser vencido com a lógica certa, com um bom advogado; mas sabemos que a morte é chicaneira. Perdidos recursos um atrás do outro, começou a achar que a coisa é como dizem esses livros, coaches, gurus todos: que era questão de manter-se rija na rinha, de teimar, de não ceder. Quando tia Guiomar morreu, tia Nenê sentiu que se veria às voltas com uma revanche da morte. E tinha razão.
Dois anos depois, tia Nenê já era uma sombra. Pouco soubemos de suas dores; minha mãe não quis ficar com ela em nossa casa. Imaginamos que sofreu muito. Seu silêncio, surpreendente (vimos que mulher de muitos escândalos), não era entretanto a serenidade dos morituri; era antes a mesma teimosia de antes, que recusava a perplexidade e que tantas vezes, e tão erradamente, é confundida com tenacidade.
Retomou o périplo. Ela foi novamente atrás dos emissários, dos canais, dos porta-vozes do insondável. Mas, embora fizesse tudo o que lhe fosse pedido ou ordenado, ia por ir – como quem ronda uma porta por tanto tempo que acaba esquecendo o que espera sair, transformando em hábito e neurose o que um dia foi esperança.
Ora, ela nada tinha de Penélope. Morreu num novembro quente e dilatado – um mês em que tudo parecia estalar. Mês de muitas moscas e de verde acinzentado.
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As famílias grandes têm a virtude de não nos desacostumar da morte. Não houve, na minha infância, ano em que não morresse parente. Eu vivia com a idéia de morte presente. Não é a mesma idéia de morte iminente que, creio eu, se tem nas guerras, mas sim a ciência de que a morte existe, e de que tudo, depois dela, continua. Às vezes penso que todas as gerações se acham perto do fim dos tempos porque inconscientemente não acreditam que o mundo sobreviverá a elas. Acham que, com o apagar das suas consciências, apagar-se-á também o mundo. Viver rodeado de mortes, se não elimina (e não, não elimina), pelo menos atenua essa impressão. Via pessoas morrendo e via o mundo continuando; e embora secretamente acreditasse que o mundo continuava porque eu é que estava vivo, já me esfriava saber que não é assim. Como os anos, essa convicção só aumentaria; hoje, já sou para mim mesmo muito banal.
Coube a mim, que já enterrara o pai, segurar-lhe uma das alças do caixão. Ao lado dos meus tios e primos, uma sensação de clã me invadiu; pareceu que ser Tosetto tinha um significado. E tem. Mas também é fato que um nome não basta como ponte entre todos os nossos abismos.
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A tia lutou com suas muitas unhas e dentes, com sua fúria imensa, para continuar. Pensando nela, pensei que mesmo que ela não tivesse conscientemente percebido sua derrota, tinha sido mais honesta do que todos nós que, aceitando a morte na aparência, a renegávamos por trás, inventando mundos onde ela não nos pudesse atingir. Achei que, quando se torna inelutável a conclusão de que o mundo sobreviverá a nós, torna-se necessário pensar e acreditar que nós é que sobreviveremos a ele. Cri que tentamos transcendê-lo, humilhá-lo, torná-lo inferior a nós, acessório, ferramental. Que diríamos que ele nos serviu – ou que nos serve – e que não admitiríamos nunca a possibilidade aterradora de que todos, nós e ele, sejamos mero acaso, inexplicáveis e sem sentido como todos os acasos. E que, se fosse preciso, renegaríamos a própria idéia de acaso, tecendo entre todas as coisas e eventos uma rede imaginária que nos detivesse em nossa queda da corda bamba rumo ao nada.
Como a tia, acreditei por demais no mundo. E o mundo falhou-lhe, como nos falha a todos.
Demorei para compreender tudo isto, e, depois, demorei ainda mais para começar a crer. Não no mundo. Mas isso, amigo, é coisa que, por enquanto, ainda não sei contar como aconteceu.
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Esqueci de dizer que era má sibila. Pois um dia, eu menino de sete anos, tomou meu rosto entre as mãos e disse:
– Você é um menino muito bonito. Vai ganhar muito dinheiro.
Eu sei que os que me conhecem em pessoa estão se afogando de riso. Perdão, amigos; façam de conta que estou dando uns tapinhas nas suas costas.
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Sim, fiquei feio e remediado. Mas consolemo-nos, amigo, com Nicole Grimaudo. Que eu não sei se é rica, mas não fez vexame à pitonisa que disse que era e continuaria sendo linda.
Arrivederci.