25. Nelson e Odete - Brás, Pari e memórias fundas - monarquia e república - Myles sings the blues - paciência
De novo, vai sem muito rever
Peguei para ler A menina sem estrela, livro de crônicas memoriosas de Nelson Rodrigues.
(Eu queria começar dizendo que há coisas na prosa de Nelson que me exasperam. O amigo decerto me censuraria: “E daí que o Nelson tem coisas que te exasperam, Orlando? Deixa o Nelson em paz. Não venha falar dele. Você não tem estatura nem sequer para exasperar, sei lá, o Marçal Aquino!”. Verdade, amigo. E mesmo assim me exasperam. As repetições. As frases peremptórias. Tem horas que imagino que voavam perdigotos da boca dele quando escrevia. Imagino sim – e olha que gosto dele. Gosto, mas me exaspera. Quer que eu diga o quê? Uai.)
Ri quando ele disse que “Odete” é nome de Zona Norte, o que quer mais ou menos dizer, na São Paulo de hoje, que é nome de Zona Leste (ou de fundão da Sul). Mais ou menos, porque hoje e aqui essa pobreza da leste ou do fundo da sul tem um componente avacalhado, sórdido, que eu creio que a zona norte do Rio nos anos 60 não tinha – assim como não o tinha a zona remediada em que eu cresci, entre Brás, Pari e Belenzinho.
Mas Odete. Hoje o nome não é popular, ou antes, a Odete de hoje é a Ketleyn, a Jennnyffer. Mas conheci Odetes quando era menino. Era tido, no círculo familiar, como nome de mulher promíscua. Uma delas, de cuja cara não me lembro, morava no mesmo cortiço em que moravam minhas velhíssimas tias italianas. Um dia se queixou pro meu pai de mal estar no fígado. Meu pai disse à minha mãe:
– Só falta saber se esse mal estar é menino ou menina.
Deu-se que era menino. Deu-se que Nelson sabia do que falava.
* * *
A Rua Maria Marcolina começa na Rangel Pestana, no Brás, e termina no Largo ou Praça Padre Bento, no Pari.
Quem foi a dona Maria Marcolina? Foi d. Maria Marcolina da Silva Prado Monteiro de Barros, mulher, mãe e avó de próceres.
Quem foi Rangel Pestana? Foi o jornalista republicano Francisco Rangel Pestana, um dos fundadores do jornal que já foi a Província e se tornou o Estado de São Paulo.
Que quer dizer Pari? Abro até aspas: “Armadilha de pesca que consiste em um tapume feito de estacas, que atravessa o rio de um barranco a outro, tendo ao meio uma abertura por onde os peixes, não tendo outra passagem, atravessam e caem num compartimento, cujo fundo é uma tela, onde são retidos”. Faz sentido, dado que o bairro é vizinho das antigas várzeas do Tietê.
Das muitas casas em que vivi, a primeira na minha lembrança ficava numa vila no Largo ou na Praça Padre Bento. Que me conste, vila e, pois, casa ainda existem. Lá, em 1970, dois homens vieram entregar um aparelho de televisão Philco, preto e branco, no qual vimos o Brasil fazer 4x1 na Tchecoslováquia. Toda a família me perguntava:
– De quem que o Brasil ganhou, Giugnetto?
E eu, tonto de nascença:
– Da butcheca da vaca.
Eu estava sentado no sofá, de frente para a janela. Fazia um sol forte, a luz me fazia lacrimejar. Um dos entregadores era um senhor negro cuja cara, na minha lembrança, se mistura com a cara do Cab Calloway.
No largo (ou praça) havia uma espécie de fonte ou chafariz desativada, que se enchia nas chuvas de começo de ano e virava uma piscina para a molecada. A água terminava marrom: de fuligem, da terra dos canteiros que vinha nos pés dos meninos. Antes de entrar em casa, eu tomava um banho de mangueira no quintal.
No largo havia, há ainda, a Igreja consagrada a Santo Antônio. Os padres vinham quase sempre da Alemanha; dizia-se que, no tempo da guerra, espionavam para o Eixo, e que, no topo de uma das torres, o crucifixo disfarçava uma antena. Quem saberá?
Há alguns anos a igreja se incendiou. Um dos sinos despencou do alto de uma das torres: inteiro, mas enegrecido, jazeu no chão, visível do átrio a todos os que entravam. Ficou assim por alguns anos, até que tudo fosse reformado.
Sic transit, a gente se repete. E não é toda ruína que entristece, mas aquela me entristecia.
* * *
O mundo muda. Hoje a butcheca foi para um lado, a vaca para o outro.
* * *
Dia desses se comemorou, saberá Deus por quê, a proclamação da República. Um marechal barbaças com o nome sonoro de Deodoro puxou uma espada num 15 de novembro e derrubou o Imperador – junto com ele nossa monarquia. É, o mundo muda.
Eu gosto da monarquia, mas não tenho experiência direta do que seja viver sob uma. Acho que é um pouquinho como gostar de Bizâncio ou como torcer para a Portuguesa: gosto das barbas e da devassidão dos Imperadores, dos homens sérios de casaca, dos gabinetes, dos títulos indígenas (Barão de Topirocuçu, essas coisas), dos merréis, da ideia de uma corte. Sei, por ler a respeito, que o Brasil era melhor sob ela, dados tempo e circunstâncias; mas qualquer nostalgia que eu tenha desse Brasil e desse regime é exercício de imaginação, e qualquer esperança que eu tenha de restauração dessa ordem perdida é wishful thinking.
Deve ser a mesma coisa com admiradores do regime militar. Eu tinha um ano e meio quando saiu o AI-5; nos anos mais duros do regime eu era criança. Brinco sempre dizendo que o meu auge de subversão deve ser quando atirei uma chupeta na cara de algum sargento. Em todo caso, no idílio da infância o ambiente político não entrava: cresci como um caubói, sem saber nome de xerife ou de ministro. Ter saudades do regime militar também é, pois exercício de imaginação. Do que eu teria saudades mesmo é da infância nos anos 70: do frio que era úmido, intenso e durava dias, dos passeios tranquilos em família pelo Parque Dom Pedro II nos sábados à noitinha, de acordar com a casa já em movimento, da mão do meu pai. Com o tempo, fui ouvindo e aprendendo. Quando virei adulto, em 85, estava tão farto dos milicos quanto os atenienses de Aristides, em parte pelas mesmas razões.
A vivê-la, senão a sofrê-la, vi que a democracia subsequente tem sido uma sucessão de desastres melancólicos, uma sordidez até difícil de se inimaginar. E vi ainda que, nas mãos da esquerda, a imundície, a degradação geral da ética, da moral das pessoas alcançou níveis além do espantoso (e que não param de subir). É natural querer mudar esse estado de coisas, mas não consigo ver claramente o que deve ser feito, nem por quem.
Não quero a República, não sei o que era a Monarquia. Soy contra, soy contra. Mas maciamente contra, suavemente contra, domingueiramente contra.
Falei da mão do meu pai. Foi ele quem primeiro me inoculou a vacina contra o comunismo, que ele achava, com muita graça, que era coisa de cariocas vagabundos encharcados de uísque, como (já então) o Chic Bruaco e o Vinícius de Morais. Hoje tento identificar qual seria o credo político dele, que votava no MDB contra a Arena, e só me ocorre pensar que era o da birra. Não era anarquismo, porque este é a birra com justificação teórica, e teoria meu pai não tinha nenhuma: era antes uma bronca geral com tudo. Era contra.
* * *
Myles sings the blues.
– O que o bluesman fez hoje?
– Well, he woke up this mornin’.
– E depois?
– He saw his baby’s gone.
– Que chato. E depois?
– Well, he woke up this mornin’.
– Eu ouvi. Mas depois?
– He saw his baby’s gone.
– Gente, eu sei. Mas depois, depois.
– He’s got the mornin’ blues.
– Por quê?
– ‘cause his house just ain’t no home.
– Ô, coitado.
Pléin, pléin-pléin, pléin-pléin, pléin-pléin (breque) pléin-bléin-bléin.
* * *
Na plataforma, em vez do trem, chega um dragão chinês. Comprido, barbudo, vermelho, dentuço, deitando fogo pelas narinas e escamas. Nos alto-falantes:
– O metrô informa: estamos sem paciência.
Sem paciência pro mundo, para as redes. Para você, amigo, a paciência é muita, e a boa-vontade ainda maior.
Até semana que vem.