Estava aqui pensando naquela maquineta amazônica que fala e faz coisas por você – acha receitas, toca músicas, lê almanaques – cujo nome, creio, é Alexandra. Bem, dizem que é movida, se é que mover é o verbo certo, a inteligência artificial. Mas e se, em vez disso, em vez de chips, algoritmos de vendas e “inteligência” artificial, houvesse ali almas aprisionadas? Almas presas por algum sortilégio qualquer, escravizadas e obrigadas a te atender?
E almas não muito inteligentes. Ou meio turronas. Você pede música e a Alexandra começa a tocar, digamos, os maiores sucessos do folclore tirolês. É porque é a alma de um austríaco saudoso de casa que está lá dentro; ele se chama Hans, ele odeia ser tratado por Alexandra, e então quer dizer que você pediu música, é? Pois dane-se você, ele vai ouvir o que ele quiser.
Como extra, imagine um programa do History Channel investigando os mestres de vodu que trabalham nos laboratórios da big tech.
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Que saudades da professorinha que me ensinou o bê-a-bá. Na verdade, ela não existiu; se o amigo permitir que eu me vanglorie um pouco, direi que quando entrei na escola, em 1972, eu já sabia ler. Onde aprendi? Com quem? Como? Sei lá. Mas lia.
Dona Flora, a professora do terceiro ano de pré-primário, começou a me ensinar, com seus pés rosados descalços sob a mesa, suas canelas brancas e a curva das batatas das pernas, um outro tipo de bê-a-bá; um que a gente morre antes de terminar de aprender.
Dou exemplo. Noutro dia, no metrô, sentou-se ao meu lado uma jovem, que lia um livro que parecia incomodá-la ou afetá-la por demais. Remexia-se, fazia ruídos sob a máscara, abria as páginas aos tapas.
De início, achei que era eu que a incomodava. Sou gordo, os bancos são pequenos e parece que ficam cada vez menores, e meus movimentos às vezes incomodam quem se senta comigo. Aprendi com isso a ficar imóvel, tanto quanto dá, preso na minha própria leitura. E evito o banco colado à janela, já que há mais espaço do lado do corredor. Mas não era eu: era mesmo o livro. Vi unhas vermelhas, mas não vi o título e não pesquei o assunto.
Quando me levantei para descer, percebi que ela estava de saias e que tinha belas pernas. Fiquei, saberá Deus por que, espantado (então mulheres de saias se indignam com livros?) e com os olhos grudados nelas. Ela ia tão absorvida na leitura que não percebeu meu olhar, reconheço, muito inconveniente. Coisa rara em mulher, não perceber que a olham.
Que livro seria esse?
Eu não aprendi a ler e a me indignar ao mesmo tempo.
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Quando entrei no ginasial, em 1978, fazia alguns anos que o francês deixara de ser curricular. Havia só o inglês, que, na escola pública, era a repetição, por sete anos consecutivos, do verbo to be. Ái émi, iú ári, rí-xí-íti ís.
Um primo riu de mim quando pronunciei qu’est-ce que c’est como qui ésti cê que césti. Disse que era quesquessê, o que me pareceu absurdo. Argumentei “mas não é o que está escrito”, o que o levou a ponderar que eu era “burro pra caralho”. Você também tem primos assim, amigo, com o peito tão cheio de sinceridade? Fazem-lhe falta?
Bem, em todo caso, ali vi que eu e o francês só nos uniríamos no amor à manteiga. E abençoei todos os tradutores.
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A OMS prevê que até o dia 14 de abril de 2022 já haverá no mundo mais variantes do kovídio do que tipos de queijo na França.
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Do anedotário político inverídico, mas não implausível.
Dizem, não sei com quanta razão, que o amor dos militares pelos tecnocratas vem de sua condição e implica, ou constata, o reconhecimento do peso da hierarquia nos campos do saber.
Ora, se o conceito de hierarquia é razoavelmente claro, o de saber já não o é tanto.
Deu-se que Médici ia se reunir com Brejnev e, desconfiando da sinceridade do líder comunista, fez o antigo SNI contratar um telepata para, numa sala vizinha, ler os pensamentos do russo e ajudar o Planalto a discernir verdade de mentira. Por que um telepata e não, digamos, um profeta neopentecostal, ou um pai de santo? Tecnocracia. Hierarquia do saber. Método científico. SNI.
Bem: a empreitada teve sucesso e não teve.
Teve porque o telepata leu com clareza tudo o que Brejnev pensava.
E não teve porque o telepata não falava russo. O Itamaraty classificou a transcrição dos pensamentos de Brejnev como gibberitchky.
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Noutro dia, por volta das sete da noite, fui pôr o lixo na rua. Um vizinho de casa defronte estava em pé na frente de sua casa, do lado de dentro das grades da sua garagem. De pé, parado, sem fazer nada, nem sequer fumando um cigarro. Parado. Atrás dele, a casa tinha todas as luzes apagadas. Lembrei de minha mãe, que, quando estava sozinha, ficava sempre no escuro; lembrei do homem do Brás que, tarde das noites de sábado, quando eu voltava da casa da minha namorada, lavava a área de seu sobrado, também com todas as luzes apagadas: um velho com balde às escuras numa noite de sábado. Lembrei de mim mesmo, que acendo poucas e cada vez menos luzes quando estou sozinho.
Lembrei disto tudo para concluir que velhice, solidão e luzes apagadas parecem ser uma coisa só.
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Dezembro, amigo. Quando começamos era maio, e olhe aonde chegamos: reinados, papados houve que não duraram tanto.
Estou, não nego, meio espantado. Mesmo assim, até semana que vem.
Eu era mais inocente que você, as pernas das minhas professoras só foram me impressionar na sexta série. Na roça as professoras, ainda que tivessem atributos, era todas consideradas senhorinhas mesmo.