29. Coughing twenties - cuca lerda - Nelson, Coelho Neto e velórios - viúvas gordas - mais Coelho Neto, e mais velórios - Baba Yaga
Ou coisa semelhante a Baba Yaga
O ano de 21 acaba, o segundo ano dos coughing twenties, dos sneezing twenties, e olhando aqui vejo que foi o ano em que li menos livros inteiros na vida: não chegaram a quinze (faltam dezesseis dias pro ano acabar; talvez entre mais um – ainda assim, não vai dar quinze).
Houve razões pro recorde de pequenez. Uma delas é esta: leio cada vez mais devagar. E leio cada vez mais desorganizadamente. Antes eu lia um livro só de cada vez, e rápido. Hoje, leio quatro, cinco ou seis simultaneamente, e todos bem devagar.
Por que leio mais devagar? Porque enxergo pior, mas isso pouco importa. É porque estou com a cuca mais lerda. Ainda mais lerda, dirá quem me conhece bem, e pois é, ainda mais lerda. Eu quase me defendi dizendo que ninguém fica com a cuca mais ligeira conforme envelhece, mas seria uma mentira: muitos ficam, sim. Eu é que não.
I grow old, I grow old, I shall read the pages of my books too slow.
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Um dos livros que venho lendo devagar é A menina sem estrela, de Nelson Rodrigues. Já falei dele aqui, do quanto é bom e ao mesmo tempo exasperador. Bem, hoje o li comentando que ao velório de José do Patrocínio apareceu “o Coelho Neto. Só”.
Ficou claro que, pro Nelson, ter só o Coelho Neto no velório era um vexame, uma miséria. Imagine o amigo que morre e que, entre todos os que poderiam, até deveriam vir ao seu velório – o Lyla, o Papa, o Brad Pitt, o time do Atlético Mineiro – vem só o equivalente moderno do Coelho Neto, digamos, o Carpinejar (cujo nome começa com carpir, o que ajuda, mas não ameniza o vexame).
Morre o José do Patrocínio, ou, dados os tempos, morre a Dejanylla: chora-a o Carpinejar. Que vem, para gáudio do Nelson, gordinho como viúva machadiana.
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Em tempo: eu já li muito Machado de Assis, e não consigo mesmo lembrar se as viúvas dele eram gordas. Não lembro se Valéria era; Estela, creio, continuou esguia depois de viúva. Acho que Virgília se manteve bem, também; e Fidélia, sempre achei, era magra.
Terei lido mal? Ou mal vai a cuca, que não lembra mais do que leu?
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Ainda em tempo: nunca li Coelho Neto. Nada. Dele sabia apenas que foi o pai do Preguinho, jogador que marcou o primeiro gol do Brasil numa Copa do Mundo. E quem quer ler poeta que foi pai de boleiro? Mas, escrevendo esta newsletter, fui ver que versos ou pensamentos ele tem de célebres, e eis o que achei:
O beijo é uma estrofe que duas bocas rimam.
A casa da saudade chama-se memória: é uma cabana pequenina a um canto do coração.
Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-la, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.
A saudade é a memória do coração.
A rosa é uma maravilha de composição, é a forma, é a cor, é o aroma, mas se a colheres estabanadamente, podes espetar-te nos espinhos que a defendem; sábio é o que a obtém sem mágoa.
E, oh, é dele isto aqui:
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Olhem as exclamações. Dá pra imaginar o poeta declamando isso aos berros para a sogra meio surda.
Foi aí que entendi o Nelson Rodrigues.
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Se ser mãe é padecer no paraíso, ser pai é ficar do lado de fora, no Purgatório, jogando dinheiro por cima do muro.
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Mas o velório do José do Patrocínio. Ou o seu, amigo. Ou o meu: a verdade é que, consoante a idade avança, penso mais e mais no meu velório. E a verdade continua um passinho além, porque o meu velório, na mais do que remota hipótese de aparecerem todos os que deveriam ir, será um evento engraçado.
Me dou com gente muito diferente entre si: três grupos familiares, amigos de três empregos diferentes, amigos de adolescência, amigos de internet, amigos de Universidade, amigos de bico, gente conhecida de modo avulso.
É aquilo que os de outrora chamariam de malta heterogênea.
Eu estarei presente ao meu velório na menos onisciente das condições, que é a do cadáver, e por isso não vou poder ver o que as diferentes rodinhas dirão entre si – e umas das outras. Oh, isso seria engraçado. Ao menos isso.
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Eu disse ali em cima que não estou com a cuca mais ligeira, e há de ser por isso que não entendo por que chamam Márcia Tílburi de filósofa; para mim, se ela for filósofa, Tim Leary também é, e João Canabrava não menos. Mas que sei eu? Se os que manjam e mandam dizem filósofa, filósofa ela há de ser.
Valendo-se dessa condição, aumentada sem dúvida pelos espíritos, ela tuitou, dia desses, que achava “muito bacana ver o @LaylaOficioso unindo a América Latina (ou Abya Yala, como preferimos nós, avessos a essas héterodenominações patriarcais europeias e capitalistas)”.
O acento agudo em heterodenominações é uma afirmação dos poderes da filosofia sobre as regras vãs e vis da ortografia, e merece aplauso, até foguetório. E é claro que o coração da gente se aquece tanto quanto o de um gato num micro-ondas quando nos damos conta de que há toda uma turma avessa à toponímia patriarcal europeia e capitalista. Eia, guerreiros. Sus, Policarpos.
Mas de onde saiu Baba Yaga, digo, Abya Yala? Uma guglada na expressão explica (perdão, não dou linques):
Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada no norte da Colômbia tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darién e vive atualmente na costa caribenha do Panamá, na Comarca de Kuna Yala (San Blas).
Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América expressão que, embora usada pela primeira vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência. Muito embora os diferentes povos originários que habitam o continente atribuíssem nomes próprios às regiões que ocupavam – Tawantinsuyu, Anauhuac, Pindorama – a expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento.
A sintaxe e a coesão dos textos não são das melhores (por exemplo: se são os povos originários do continente que se autodesignam assim, então Abya Yala é o nome dos povos, e não do continente; e que parcimônia no uso da vírgula, não?), o que sem dúvida é afirmação louvável do espírito autóctone diante do idioma imposto a ferro e fogo pelo colonizador. Mas veja, amigo, o tamanho da nossa cegueira: não percebemos que, dum loquimur, enquanto casquejamos, uma das cabeças da Hidra Identitária está tomando proporção continental.
E não há Hércules à vista.
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Amigo, não te esqueças: sábio é o que obtém a rosa sem mágoa. Mas tu podes ser trouxa, como eu, e obtê-la espetando os dedos. O que importa, afinal, é a rosa: pros dedos há sempre merthiolate.
E pro nosso encontro há, senão Paris, ao menos a semana que vem. Até lá.