30. Tias - boas festas - os sentidos - políticos que não me reconhecem - Capital Inicial e o senso de sacrifício
Sabia que estamos em 2074 a. u. c.? Pois estamos
Um dos natais entre 1984 e 1987 eu passei sozinho. Não lembro mais qual deles foi. Lembro, sim, que foi um dia chuvoso; que o passei quase sem comer nada (fui jantar um sanduíche humilde de pão com presunto já por volta das oito da noite); e que foi, é claro, muito ruim. Pelo intervalo selecionado, percebo que eu tinha entre 17 e 20 anos; não é, pois, impossível que eu estivesse no meu momento “credo, lá vêm as tias”. Mas pode ser que não, também; eu sempre gostei de todas as minhas tias, algumas das quais eram boas de copo.
Enfim, se havia lição a aprender nesse Natal solitário, ela foi aprendida, e nunca mais passei a data sozinho. Inclusive aprendi uma resposta boa pras tias que perguntavam das namoradinhas:
– Que namorada! Minha paixão é você, véia gostosa.
Dava certo. Com as minhas tias, pelo menos. Aquelas boas de copo.
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Conheço a expressão Boas Festas desde moleque. Vinha em cartões de Natal já nos anos 70, e seu significado não era anticristão: servia para dar conta simultaneamente do Natal e do Ano Novo, que são, afinal, duas festas diferentes e separadas. Já que eu não vou te ver entre 24 de dezembro e 02 de janeiro, tem lá boas festas, seja feliz o teu Natal e próspero o teu Ano Novo: esse era, e que me conste ainda é, o sentido da expressão, e é nesse sentido que ainda a uso.
Mais nociva do que essa é a história de abandonar o anno Domini ou o antes e depois de Cristo para falar em era comum. É perverso, sim, e é idiota. Até porque o que inicia a conta dos anos e torna comum a era é o nascimento de Cristo.
Ou seja, o Natal. Foi por causa dele que eu nasci em 1967 e não, por exemplo, em 2720 ab urbe condita.
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Vi propaganda da continuação de Sex & the city e lembrei que, na única vez que tentei ver a série, dei com aquela loirinha com cara de cavalo abrindo as calças de um sujeito enquanto cantava um blues de cabaré, tchá-tchá tchá-tchá tchááááá. Pensei: meu Deus, eu perderia o date e ofenderia a menina de morte, porque ia cair na gargalhada.
Ou talvez não. Decerto é a idade que faz com o que o sentido do humor passe à frente de outros sentidos.
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Como não ser reconhecido por políticos.
1) Uma vez, acho que em 1997, eu ia passando à noite pela 7 de Abril quando Mário Covas saiu de um carro que acabava de encostar. Estava acompanhado de outros dois sujeitos. Ele não me reconheceu.
2) Antes, talvez em 1985, eu ia entrando pela rua Carolina Fonseca, em Itaquera, num sábado à tarde, e, montado num terreno meio baldio quase na esquina da Pires do Rio, havia um palanque pequeno – pequeno mesmo – onde um José Serra soturno, de braços cruzados, se preparava para comiciar a uns gatos pingados. Um cabo eleitoral gordinho regia, com sorriso de sátiro, até lingüinha de fora, um coro fraco de “Serra! Serra!”. Ainda desta vez não fui reconhecido.
3) Depois disso, em 2002, na greve dos cem dias, Marilena Chauí, sentada numa cadeirinha posta naquela praça da Portaria 1 da USP, com a ajuda de um microfone e uma caixa de som, dizia aos alunos que “faltava Lênin” na tal greve deles. Me persignei e fui em frente. Ela, comme d’habitude, não me reconheceu.
4) Inverno de 2004, eu estava na Paulista, hora de armôço, perto da Kalunga, quando uma bela mulher de vestidão vermelho, ar vestal, voz baixa e modos doces passava cumprimentando pessoas: era a doutora Havanir. Claro que não me reconheceu.
5) No casamento de um amigo, mais precisamente no restaurante da recepção, estava o Genoíno. Já contei aqui: ele se senta como presidiário, queixo no peito, olhando de baixo para todos os lados. Me cumprimentou com as sobrancelhas, mas é evidente que também não me reconheceu: cumprimenta todos por puro medo.
Meu pai esteve, por acaso ou farra, no mesmo palanque do Adhemar de Barros (que achou que ele era da polícia e lhe ofereceu sinecura – true story). Minha mãe, aqui certamente por acaso, num palanque do JK (que, educado, a cumprimentou). E minha mulher perto do Ulysses Guimarães, que foi a uma festa no banco onde ela trabalhava (foi antes dele mudar de cor e se mudar pro fundo do mar). Nenhum deles foi reconhecido.
Agora percebo que só dei exemplos de não reconhecimento, mas não disse nada sobre como se faz isso. Bom, é uma expertise familiar. Não sei se dá pra ensinar. Se der, talvez eu ofereça um curso online.
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Enquanto escrevo, nalgum boteco das redondezas um sujeito de voz grave castiga e mim e ao resto da vizinhança com covers do Capital Inicial, banda fenomenal que gravou muitos discos, mesmo só tendo três músicas.
Quero-lhe mal. Mas me arrependo logo. O Natal vem aí; há que perdoar. Perdoa-se tanta coisa, por que não perdoar covers do Capital Inicial?
É tempo de sacrifício.
Perdoe aí do seu lado também, amigo. Sacrifique-se. Ouça Simone. Não reclame das meias menores que seu pé, nem das gravatas em tons metálicos. Chame a tia de véia gostosa. Não maldiga o “parmesão” da Teixeira. Não dê um piu quanto às uvas passas. Suje os dedos no chocottone. E a Cereser, como as maiúsculas, é nossa amiga.
Em suma, ame e dê amor.
Em suma, Feliz Natal.
Nos vemos, mais gordos, semana que vem.