31. Garoa de natal - centenários, bicentenários - votos novos - mortos - metafísica - "presida" - Arthur Rackham
Quão, ó quão moderno és tu, Horácio?
Começo a redigir esta newsletter na manhã de 24 de dezembro. Não são nem nove da manhã; garoa aqui em São Paulo, ao menos na parte dessa cidade vasta em que calhou de eu morar, e faz uma friaquinha.
Dizem que São Paulo é a cidade das quatro estações num dia só, e às vezes é verdade. É verdade também que já aconteceu do frio entrar dezembro, mas, que me lembre, nunca tinha cruzado o limite da primavera. Desta vez, entrou pelo verão. Não me queixo.
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Em 22, que está logo aí na esquina, comemoraremos o bicentenário da Independência e lamentaremos o centenário da semana de arte moderna (vai tudo em minúsculas por modernismo).
Eu aprendi a ser moderno, e até brasileiro, com Monteiro Lobato. Enquanto o poeta comia amendoim, continuei as aulas de modernidade ao reverso, até a Pascendi. O brasileirismo, ah, esse, como as vertigens, aflora em horas inesperadas.
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Ah, sim: ainda em 22 nós, como os casais modernos, também renovaremos os votos.
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O amigo já deve estar, não digo careca, mas com umas entradas feias na cabeça, de saber que nasci em 1967. O que talvez não saiba é que vez ou outra me distraio a medir a minha expectativa de vida vendo as datas das mortes dos que nasceram em 1867. Dos famosos que nasceram em 1867, bem entendido, porque dos anônimos, ora, anônimos viveram e anônimos morreram.
Marie Curie, por exemplo, se foi em 1934, o que é OK se a gente pensar no tanto de radiação que deve ter aguentado.
Luigi Pirandello se aguentou até 1936, o que me parece bom, e me dá, pela genética, mais 14 anos (estou conforme).
Melhor seria, no entanto, ter a genética de Arturo Toscanini, que foi até 1957, maschiaccio noventão.
O escritor japonês Natsume Soseki, caro ao coração do poeta Adalberto de Queiroz, se foi em 1916, de úlcera, doença que, de pura orelhada, acho que devia ser rara nos japoneses daquele tempo.
Falando neles, o poeta Rubén Darío, alvo da admiração algo volúvel de Jorge Luís Borges, viveu mais do que os poetas tuberculosos, pois morreu em 1916, mas menos do que os escritores fantásticos.
Já o poeta António Nobre foi cedo, em 1900: o Porto é frio, esses caras bebem muito, enfim.
Seu compatriota Camilo Pessanha (ou será Peçanha?) se aguentou até 1926, o que não está mau. Era vate coimbrão.
Wilbur, um dos dois irmãos Wright, se foi em 1912 (não sei se em desastre aéreo; tomara que não).
O ilustrador maravilhoso – oh, maravilhoso mesmo – Arthur Rackham foi até 1939, razoáveis 72 anos.
Maria de Teck, mulher de Jorge V, foi, como a maioria dos royals, longeva, morrendo em 1952.
O arquiteto Frank Lloyd Wright aguentou-se até 1959. Vê-se que os arquitetos duram mais do que os reis.
E, para encerrar de cabo a rabo, o ladrão Sundance Kid foi fuzilado pela sempre atenta polícia boliviana em 1908.
Mas, afinal, o que é que eu deduzo ou provo com essa lista aí? Nada, amigo. Ou, por outra, deduzo e provo que não tenho a menor idéia de quando o homem lá em cima vai soprar o apito, porque não há média a tirar. E que quem tinha razão era Horácio: tu ne quasieris, Orlande.
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Em minha defesa: quando um ano acaba, é natural pensar na morte. Morrem os anos, morremos nós. Ora.
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O amigo vestirá branco no réveillon? Comerá lentilhas? Pulará sete ondas? Fará resoluções pro ano que entra? Planejará a dieta e os exercícios? Prometerá que nunca mais faz a tal coisa que lhe tenha doído na consciência?
Vista, pule, coma, resolva, planeje, prometa. Olha que não há mais metafísica que sete ondinhas e cuecas brancas. (Minto: há. Mas não à meia-noite, com fogos e champanhe lá em cima.)
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Quem chama presidente de presida chama Dostoiévski de Dosta ou de Dostoca.
Se o amigo for essa pessoa, continuará meu amigo. Mas pôxa, amigo.
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Acabo a newsletter dia 28 de dezembro, quase às oito da noite. Nos vemos logo ali depois da esquina, sim? Sim. E como eu disse que Arthur Rackham era maravilhoso, fique aí com essa ilustração linda dele, que devia ter ido no Natal mas vai agora e tudo bem, né? Vale.