32. Gentê...! - III d. C. - pinga com limão - Aristides - Bastião - ciente! - e feliz ano novo.
"Você é rica e toma até ki-suco, e eu sou pobre e meio maluco, e o que mais gosto é pinga com limão (que bão, que bão)." - W. D.
Uma das coisas que, como os bons e os maus comediantes de stand up, eu não entendo são as pessoas que posam para fotografias anunciando que tomaram a dose n da vacina da quo vide.
– Gentê, vacinei!
OK. Não vou aplaudir, mas também não vou vaiar. OK. Mas dava no mesmo, assim, “a nível de” informação útil sobre a pessoa, ela dizer:
– Gentê, comi pão na chapa!
Ou:
– Gentê, tirei aquela unha encravada!
Ou:
– Gentê, completei minha coleção de discos do Nelson Ned!
Claro, cada qual fala e faz o que quiser. Eu cá não me queixo, só comento. E bem-vindo, amigo, ao ano III d. C. (depois do Covid).
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Aliás, que seu ano III seja bárbaro de bom. Ou bárbaro de normal, vá: sejamos modestos nas expectativas.
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Meu avô, o severo senhor Samuel Erasmo Tosetto, orçava pela idade de Cristo quando veio a Hespanhola. Reza uma lenda familiar que protegeu-se com um cantil de pinga com limão: sempre que via um caindo (e se dizia isso mesmo, que o povo caía morto na rua), vapt, um trago.
Eu disse cantil, mas podia ser uma daquelas botijas de barro em que o vinho vinha naquele tempo. Cheguei a ver uma em casa da avó; usavam-na para gelar água, e servia muito bem. Portanto, havia de servir para a pinga com limão.
Morava no Brás, o velho, e por isso ia de cantil, botija ou garrafinha. Morasse na São João, e teria duas piscinas. Uma pura e a outra, claro, com limão.
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Havia na Atenas de Temístocles um camarada de nome Aristides, que tinha por alcunha o Justo. Hoje, Aristides é nome de tio ou de dono de boteco, senão de banqueiro do bicho; naquele tempo, porém, era nome de estratego e de justo. Nada melhora, amigo.
Mas vamos adiante. Tendo Aristides se desentendido com Temístocles, pediu-se aos cidadãos que votassem o seu banimento. Ora, as cédulas desse plebiscito eram cascas de ostras (daí, segundo Monteiro Lobato, o termo ostracismo). Bem: está lá o Aristides, todo justo, remoendo suas mazelas, e lhe chega um cidadão analfabeto com sua casca de ostra, pedindo-lhe que nela escrevesse o nome de Aristides.
– Mas, ô, amigo, você conhece esse Aristides? – perguntou-lhe Aristides.
– Nunca vi mais gordo.
– E que mal te fez ele?
– Nenhum.
– Então por que cazzo...?
– É esse negócio de “o Justo” para lá, “o Justo” para cá, toda hora essa merda. Já encheu.
Sendo, como era, o Justo, Aristides escreveu seu nome da casca de ostra. E foi banido.
Tem moral essa história? Se tiver, é a seguinte: muita mudança se faz nessa vida desse jeito, falando arre! e mandando tudo à casa do chapéu. Não subestime o amigo jamais esse efeito Aristides, quer no seu emprego, quer na sua vida sentimental, quer na política, quer na vida pública, quer no seu próprio coração. Essa é a espada de Dâmocles.
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Amanhã será Dia de Reis. Entre os nossos hermanitos continentais, é o dia em que se trocam os presentes, porque foi o dia em que os Reis Magos presentearam Jesus. Em Portugal, comem um bolo dito Rei. E nós, ou alguns de nós, temos o último dia da Folia de Reis.
O amigo é decerto mais jovem do que eu, e mais citadino, e talvez nunca tenha visto uma Folia de Reis. Eu vi quando era menino, na cidade da minha mãe, no interior de Minas Gerais, e vou lhe dizer que dava medo.
Em parte porque eu não entendia muito bem o que acontecia ali. Cantava-se alguma coisa cujas palavras eu não compreendia, e que me soava lamentosa, fúnebre, tristonha. Tocavam-se uns instrumentos, mas mal, ou à justa (que soa de modo meio oriental). A coisa não parecia foliã; e eu não via Rei nenhum. Ou talvez o Rei fosse o sujeito mascarado que cruzava pedaços de pau, à maneira de um duelo de espadas, com o sujeito igualmente mascarado e vestido de azul que todos chamavam de Bastião.
Era dele que vinha o medo maior. Pois a função do Bastião, além de duelar com, talvez, o Rei era aterrorizar a molecada. Corria atrás deles, grunhindo; os agarrava e os pendurava pelos pés; pulava à frente deles, tocava-os com sua espada de pau. Eu disse aterrorizar porque eu ficava aterrorizado, achava que quem se escondia atrás da máscara era louco ou assassino; mas os moleques normais, é claro, adoravam tudo aquilo e o provocavam de todos os modos. E era uma espécie de honra conseguir fugir dele.
Ora, havia naquele tempo o costume de se pagar promessas oferecendo almoço à Folia. Não sei a qual santo se prometia isso; num certo ano, minha tia Antônia, tendo obtido graça que até hoje não sei qual foi, deu almoço à Folia. O que queria dizer que deu almoço aos que a compunham e também aos que a acompanhavam: coisa de duzentas pessoas. Custava caro.
Os instrumentos, dos quais só me lembro da rabeca, ficaram sobre a cama da minha avó, o que, suspeito, era para ela honra e bênção. Ainda sobre a cama da minha avó ficou o Bastião, roncando farto de comida e bêbado de vinho doce. Entrei no quarto e quis lhe levantar a máscara para ver quem era o louco e evitá-lo nas ruas, depois. Mas pensei: e se ele acordar e me esquartejar, ou puxar uma faca e me degolar ou me estripar? (Eu era esse tipo de criança.)
Peguei a rabeca. Tentei encaixá-la no queixo, como via os violinistas fazerem, e era enorme, sua caixa larga como a de um cavaquinho: meu braço ficava quase todo esticado. E as cordas eram duras: eu mal conseguia apertá-las. Peguei o arco: eu achava que era rígido, mas a parte que toca as cordas é macia, talvez feita mesmo de crina de cavalo. Pus o arco sobre as cordas e tirei um rangido alto e horroroso, que me assustou. O Bastião se remexeu na cama e alguém meteu a cara na janela, me dando bronca:
– Guarda isso já, moleque! Não pode mexer nos instrumentos da Folia! Vai nascer asa de barata nos seus dedos!
Asa de barata nos meus dedos. Por mim, teria jogado tudo no chão e saído correndo. Mas e o Bastião? E se ele acordasse, me visse com a rabeca na mão e achasse aí mais um motivo para acabar com a minha raça? Ardiloso de medo, pus devagarinho a rabeca e o arco sobre a cama e saí de fininho, primeiro do quarto, depois da casa. E até da própria rua eu ia saindo quando uma das minhas primas veio me dizer que iam dar sorvete. Preferi – o tamanho do medo – ficar sem, e passei o resto da tarde na praça.
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Ah, sim: o vinho doce. Vinho seco, no interior de Minas nos anos 70, não se achava nem com contador Geiger ou forquilha de pajé. Até hoje há de ser difícil de achar, digamos, em Guarulhos.
É um vinho que trepa, que sobe e deixa bêbado muito depressa. Mas talvez sua ressaca não seja tão triste. Digo talvez porque, respeitando o amigo caso goste, não bebo essa merda nem morto.
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Uma coisa infernal de grupos (é, no plural) profissionais de zap-zap é que, para cada blim-blom com aviso ou informação de alguma importância (ou até de importância nenhuma, conforme 99,3% dos casos), seguem oitenta blim-blons de gente se anunciando “ciente”.
– Favor preencher e enviar até amanhã, às 13:32, o formulário que enviamos aos seus e-mails corporativos com a resposta à pesquisa sobre o canibalismo entre os lemingues da Lapônia.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Enviar, impreterivelmente até as 14:30 de 09/01/2021, fotos das fivelas dos seus cintos.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– É terminantemente vedado aos funcionários fazer careta diante do espelho no banheiro, ou ter a intenção de se maquiar de modo bizarro e/ou incompatível com o decoro de sua função.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Se a tua mãe salta fogueiras, o teu pai salta pocinhas.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
– Ciente.
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Ah, não, amigo, nem o teu pai e nem o meu saltam pocinhas. O meu, entre outras razões, porque já morreu; mas, quando vivo, sei que não saltava e nem nunca saltou: molhava decididamente os pés, arruinava o Vulcabrás, as peúgas e até as barras das calças com gosto.
E por que nossas mães saltariam fogueiras? Que absurdo isso aí. Ah: feliz ano novo. Saúde, paz, normalidade, e, como dizia o Millôr, dinheiro para pequenas despesas, é o que eu quero que você tenha pelo ano todo.
Até mais ver.
Qual é essa cidade do interior de Minas?