33. Civilização - o último caso de Arsène Dupin - cem reais - o fim do fim
Mas não é o fim.
A civilização pertence à mulher. O homem, amigo, não é o dono dela: o homem a ergueu segundo o plano, as vontades e as necessidades da mulher. Por isso ela se dá melhor do que ele na civilização; por isso ela está mais à vontade do que ele na civilização; por isso ela lhe ensina a civilização. Começa com “não ponha os cotovelos na mesa”, passa pela partilha de bens e termina em alguma enfermaria.
É natural, pois, que os homens sintam uma saudade difusa da selva ou do campo de batalha. Mas não tem mais volta. MGTOW, no fundo, é só uma desculpa para ir jogar bola ou caçar tigres e depois, quando chegar em casa, querer achar a janta pronta.
* * *
Onde estava Monsieur Garamond?
Tinham-no procurado por todos os cantos. Margot, Jules, a velha Ophèlie, o anfitrião Georges reviraram a velha mansão provençal. Tinham chamado, pedido, assoviado, estalado os dedos. Chamaram-no por todos os prenomes de que se lembraram: Pupi, Edmilson, Sara. Por fim, contrataram um detetive.
– Um homem não pode sumir assim – disseram ao sr. Arsène Dupin.
O sr. Arsène, que era o detetive, fez um ar inteligente, arregalou muito os olhos e quis pôr a língua de fora, mas algo o impediu: a luz súbita da verdade.
– O sr. Garamond nunca existiu. Todos vocês, um de cada vez, foram alternadamente o infeliz Garamond. Neguem e mintam.
Houve um silêncio constrangido. Aos poucos, entretanto, lembranças e honestidade voltavam. Margot lembrou-se de ter sido Garamond numa quermesse; Jules viveu-o intensamente com três rapazes em Southampton, seis meses antes. A velha Ophèlie tinha sido Garamond por quatro anos inteiros, e divertira-se muito. O próprio Georges, o anfitrião... E os empregados da família também tinham tido vez.
– Como sabia? – perguntou Georges, o anfitrião.
– Afora os nomes que vocês usaram – disse Dupin –, eu também fui Garamond. E é por isso que fico muito à vontade para decretar o fim desse desinteressante personagem.
E, pondo a cartola na cabeça e envolvendo-se em sua capa forrada de cetim, girou sobre si mesmo e desapareceu. Assim se foi a última flor d’Oc, culta e elegante: não com um estouro, mas com um rodopio.
Nada impressionada, a velha Ophèlie disse:
– Apesar disso, será que nós não poderíamos...?
E quatro Garamonds saíram da sala.
* * *
O sujeito desce a rua, preocupado com coisas que só ele sabe, quando um outro camarada acena para ele e lhe faz psiu.
– Pra você – diz o sujeito, estendendo-lhe uma nota de cem reais.
O homem pára e fica olhando para o outro, sem pegar o dinheiro, por três ou quatro segundos. Vê-se que está com medo de que seja uma pegadinha, um conto do vigário, um golpe qualquer.
– Pra mim? – diz, afinal.
– É – diz o outro, sacudindo a nota. – Pega.
Mas ele não pega a nota (que é quase nova). Não consegue pensar; só olha o dinheiro.
– Por que pra mim?
– Sei lá. Deu vontade de dar.
O homem sente sua suspeita aumentar.
– Vontade, é?
– É.
– E vontade por quê?
– Porque você é legal.
“Legal, eu?”, pensa o homem. Irritado, pergunta:
– Como é que você sabe que eu sou legal?
– Dá pra ver que você é legal.
– Ver como?
– Vendo, uai. Você é legal mesmo.
– Não sou.
– É sim. Você é um cara muito bacana.
E volta a estender a nota.
– Pega, vai...
Mas o homem não pega.
– Escuta, você por acaso me conhece?
– Não.
– Conhece a minha vida?
– Claro que não.
– E se eu te dissesse que já furei olho de passarinho?
– Não acredito.
– Mas furei, tá? – fala o homem, quase dando língua. – Furei!
– Mentira.
– É verdade.
– Imagina.
– Não é só isso. Já bati em mulher. Sou bancário. Como carne. Furo sinal vermelho. Sonego imposto. Não pago pensão. Exagero na bebida. Traio minha mulher. Já cheirei pó. Fiz e faço várias merdas.
– Ah, vá.
– Eu juro!
– De jeito nenhum. Você é bom demais para isso. Tó.
E volta a estender a nota.
O homem não pega o dinheiro.
– Vamos botar ordem nesta conversa.
– Claro.
– Você quer me dar dinheiro.
– Isso.
– Porque eu sou, supostamente, um bom sujeito.
– Supostamente não: você é um bom sujeito.
O homem com esforço, contém a vontade crescente de esbofetear o outro.
– OK. Digamos que eu seja.
– Sim, é o que estamos dizendo.
– Vem cá: de onde você tirou esse dinheiro?
O outro se surpreende.
– Ora, é meu!
– Seu, é? Sei.
– É meu sim!
– Duvido. Se fosse seu mesmo, você não dava.
– Por quê?
– Porque ninguém dá o próprio dinheiro.
– Ora, eu dou. Quer dizer, não dou; geralmente eu gasto com as minhas coisas... Mas hoje resolvi dar.
– Ah, resolveu.
– É, resolvi.
– Resolveu sair distribuindo o que é seu.
– É.
– Dinheiro que, já que não te conheço, acho que você deve ter suado para ganhar.
– Sim.
– Pois você não devia fazer isso.
– E por quê?
– Porque me ofende.
– Como assim, te ofende?
– Eu pareço mendigo, por acaso? Eu pareço um fudido que sai na rua pedindo, vendendo bala, cantando Alceu Valença, equilibrando pino em farol?
– Não!
– Eu tenho a minha dignidade.
– Que eu quero valorizar com uma soma razoável. Pega.
– Não pego.
– Pega, pô.
– Não!
– Olha, o dinheiro é meu.
– Sim.
– O que eu faço com ele é da minha conta apenas, certo?
– Certo.
– Se eu gasto, como, bebo, pago conta, largo no banco... é problema meu, certo?
– Certo.
– Se eu o dou a você, é problema meu também, certo?
– Não. Aí já vira problema meu.
Os dois ficam meio minuto se encarando em silêncio.
– Meu, pega. Tô te dando dinheiro, cara.
– De jeito nenhum.
– Meu, são cem reais.
– Cem reais inaceitáveis.
– Inaceitáveis por quê?
– Porque eu tenho meus valores.
– Que valores? É dinheiro!
– É um dinheiro esquisito, sujo, até podre. É um dinheiro... é um dinheiro corrupto!
– Como assim, corrupto?!
– Corrupto sim. Faz mal para a alma, faz mal pro caráter, faz mal para tudo. Eu pego esses cem agora e depois, toda vez que sair na rua, vou ficar na expectativa de que alguém venha me dar uma nota.
– Opa, calma lá. Não é assim.
– Justamente: não é. Mas eu vou ficar achando que é. Vou ficar estragado, vagabundo, sei lá.
– Cara, você é louco.
– Eu? Quem tá oferecendo dinheiro à toa é você.
– Pôxa, eu só achei que você merecia.
– Ah, pára. Ou bem eu não mereço nada, ou bem eu mereço muito mais do que cem contos, né?
– Ah, disso eu não tenho dúvida. Merece mais, claro. Muito mais. Mas cem é o que eu tenho para dar.
Encaram-se, ares tristes. A nota de cem balança à aragem leve.
– Não, não tem como eu pegar. Pouco ou demais, esse dinheiro é moralmente inaceitável. E eu já estou atrasado. Adeus.
E vai embora. Na cara, leva o arzinho, entre o carrancudo e a bazófia, que a gente assume quando sabe que pôs alguém no seu lugar.
* * *
Já se previu o fim do romance (quer o livro, quer o sentimento), do livro impresso, do dinheiro, da história, do telefone, do emprego, até da língua portuguesa. E parece que algumas dessas predições vão mesmo virar realidade.
Mas o que eu quero dizer, amigo, é o seguinte: todo dia aparece alguém anunciando o fim de alguma coisa. Só não anunciaram ainda o fim do fim. Ah, minto: anunciaram, sim, mas cada vez menos gente acredita.
Em todo caso, esta newsletter acaba aqui. Nos vemos semana que vem, sr. Garamond?
Cada vez melhor, mestre.
Genial.