34. Dostoiévski - ler e escrever - as Graças - eles lá - quo vide e mal súbito - bênçãos - humildade - Tom Petty
E um abraço pro César Miranda
Será seguro dizer que, para mim, assistir Bê Bê Brazyl é como ser voyeur de uma jaula de bonobos?
Se não for, boto a culpa nesse Dostoiévski aí que eu leio sem parar. Não sei por que, os voyeurs de bonobos, quando se ofendem com o desprezo dos outros pelo seu hobby, fazem muxoxo e mandam ler Dostoiévski – eles devem achar que Dostoiévski é difícil de entender.
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Às vezes a gente se esquece de que escrever é mostrar, é dar a conhecer coisas que existem.
Lembro de quando minha filha leu pela primeira vez. Estávamos num supermercado e entramos no corredor dos refrigerantes, onde havia um cartaz anunciando “bebidas”. Perguntei a ela, que estava no pré-primário, até onde tinha ido no bê-a-bá, até que letra.
– Estamos no “f”.
– Fá, fé, fí, fó, fú?
– É.
– E você conhece o “s”?
– Conheço.
– Sabe o som que faz?
– Sei. É sssssssssss.
– Então vem cá e lê isto aqui.
E apontei o cartaz das bebidas. Ela começou:
– Be.
Depois:
– Bi.
Depois:
– Da.
Por fim:
– Ssss.
E então deu para ver, para ver mesmo, até ouvir, o clic. Ela quase arregalou os olhos:
– BEBIDAS!
Ela devia ser capaz de ler coisas como babá, fefê, etc. Mas faltava a ela compreender que há correspondência entre palavras escritas e coisas reais: coisas, como dizem as crianças e os sinceros, de verdade. Faltava a ela perceber que a gente podia usar aquelas letras para indicar ou mostrar a realidade. Quando percebeu, foi, para ela, um desses choques de cotovelo, uma epifaniazinha.
Para mim e minha mulher, que vimos acontecer, também.
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Eu não sei se isso é verdade, mas a hipótese é bem bonita, diga o amigo se não: o engraçado é aquele que foi tocado ou tomado pelas Graças. Ou por uma das Graças em particular: Eufrósine (ou Eufrosina, como aquela sua bisavó italiana), que era a deusa da alegria.
Digo isso porque me lembrei de uma conversa que tive há tempos com alguém que desprezava o adjetivo engraçado, atribuindo-o aos palhaços, e preferindo em troca o adjetivo divertido. Ora, se os palhaços têm as Graças, os divertidos têm quem? As Diversões? E que deusas serão essas, se é que deusas são? Deusas do baile funk?
Eu acho que meu interlocutor é que estava tocado ou tomado por alguma deusa da bílis: Eris, por exemplo.
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O amigo talvez ainda fosse criança em 1989, quando o Brasil se dividiu pela primeira vez (que eu tenha notado) entre bons (os que votaram em Lizináço) e genocidas nazi-fascistas (os que votaram ou, por omissão – branco, nulo, passeio à praia –, ajudaram a eleger Hernán Cóchor). Quando, anos depois, Lizináço e Hernán apareceram juntos abraçados e sorridentes… bom, aí o que não tinha sido esquecido parou de ser dito, e ninguém quis (em voz alta) saber quem era porco, quem era leitão.
A lição aí, amigo, é a seguinte: a gente cá embaixo se divide; eles, lá em cima, não necessariamente.
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Na semana que passou fiz pela primeira vez o exame de quo vide (test, nesse contexto aí, se traduz como exame). É horrível: cutucam tão fundo o fundo do seu nariz que é como se cutucassem o seu cérebro ou o nervo do seu olho.
Deu negativo, fico folgado, até baiano, de dizer.
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Morre-se muito (e, parece, cada vez mais) de mal súbito. Talvez seja o nosso caso, amigo.
Eu, entretanto, tenho a esperança de ressuscitar de bem súbito.
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Seguindo um desses memes que abundam no tuíter, fiz uma listinha das razões físicas pelas quais sou um fodido. Não vou repeti-la aqui; está no meu perfil, e se o amigo me lê aqui, decerto me conhece de lá.
Lendo o meme, o amigo César Miranda (que lá está sob o nome @adnarimrasec) me pediu que listasse também as coisas que me abençoam. Ei-la:
ter o que fazer;
ter com quem falar;
ter para onde voltar;
ter amigos melhores do que eu.
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Quem sou eu na fila do pão? Sou quem pede. Muitas vezes me esqueço disso; muitas vezes falta-me a humildade de lembrar isso.
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Alias, humildade é a virtude que você perde na mesma hora em que começa a achar que tem.
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O falecido Tom Petty tem uma música de nome Angel dream, em que ele chama de anjo a amada perdida, a Lenore dele. A música é muito bonita e eu recomendo ao amigo que a ouça: vai gostar, periga até se emocionar. Ora, o refrão tem, entre seus versos, um que reza assim: and I can only thank God it was not too late.
Se um dia me pedirem para resumir a história da minha conversão, está aí, nesse verso do Tom Petty: ainda bem que deu tempo.
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Das bênçãos que listei, duas estão aqui, nesta newsletter, pois com ela tenho o que fazer e com quem falar. Olhe o bem que o amigo, que a amiga me faz.
E até semana que vem.