Um centavo
No verão quente de 1972, Mauro ganhou de seu pai uma nota de um cruzeiro. Junto com aquela cédula verde e grande nas suas mãos de menino de cinco anos vieram duas informações, uma certa e a outra errada. E também uma descoberta.
A informação certa era que aquele jeito de mostrar o rosto da mulher que aparecia na nota, desenhado de lado, se chamava de perfil. Talvez porque a mulher mostrada fosse bela apesar de não ter pupilas, Mauro achou que ser visto de perfil era bonito, e perguntou ao pai se podia tirar uma foto daquele jeito.
– Poder, pode – respondeu o pai –, mas não vai ficar bom. Somos italianos, narigudos e orelhudos; não ficamos bem de perfil.
Mauro, que logo conheceria as desvantagens escolares de ser narigudo e orelhudo, achou que aquilo não tinha importância. Anos mais tarde, quando viu Dante desenhado de perfil por Doré, entendeu melhor o que o pai queria dizer, ainda que o poeta não fosse assim tão narigudo e tivesse uma semelhança muito desagradável com Al Capone. Mas isto foi depois, nos anos marrons; nos verdes, Mauro decidiu que, da próxima vez que tirasse uma foto, seria de perfil. Esqueceu-se logo dessa decisão.
A informação errada era que o rosto daquela mulher era o da deusa Minerva. O pai de Mauro não sabia que a República brasileira, imitando a francesa, se deu rosto de mulher. E rosto de mulher francesa, com cabelos claros e nariz fino, com um glauco olho grego. Sem saber dessa bobagem, era muito mais fácil o pai acreditar, como acreditava, que o governo pusesse o dinheiro sob a égide de uma deusa esperta, de uma deusa sábia como era Minerva, e ensinasse ao filho essa superstição que atribuía ao estado. Mas isto foram coisas em que Mauro pensou muito tempo depois, quando compreendeu as egolatrias paternas e republicanas; menino, aceitou a deusa como aceitaria qualquer outra explicação, e até explicação nenhuma: não estranharia nada se o dinheiro levasse tanto a cara de deuses quanto a de bichos.
A descoberta foi no primeiro dia de aula, na cantina da escola: o dinheiro podia ser trocado por coisas. O dinheiro se transformava em coisas. O dinheiro comprava coisas. Aquele cruzeiro virou vinte – vinte! – balas quadradinhas e moles de framboesa. Vinte balas. Um mar de balas, um almoço de balas, um luxo árabe de balas.
Dinheiro era, portanto, muito bom.
Mas não era coisa frequente. Depois daquele cruzeiro, não veio mais nenhum: nem Minerva, nem a República, nem o pai o tiveram em mercê. E sem o cruzeiro não houve mais cantina, e não houve mais balas: só o sanduíche frio e a laranjada quente na lancheira. Mauro rodeava o pai como se fosse a cananéia, mas nada mais caiu dos bolsos dele – e Mauro, temeroso do temperamento tempestuoso do pai, não tinha coragem de pedir.
É triste a vida do menino sem balas quadradinhas e moles de framboesa. E é triste a vida do menino orelhudo e narigudo na escola pública: fugindo dos que o chamavam de zoreba, Mauro passava o recreio ora dentro da sala de aula, comendo de má vontade seu lanche ruim sobre a carteira, ora perambulando sozinho em lugares do pátio aonde os outros não iam.
Um desses lugares era a área lateral do prédio do ginásio, onde havia um pedaço de chão nu que devia ter sido jardim ou gramado, mas era apenas terra batida. Ali o sol das três da tarde, caindo para o oeste, batia reto e, nos dias secos que vinham com o final de abril, enchia a aléia de um halo de luz amarela de que o menino gostava, e na qual mergulhava feliz, de olhos semicerrados e lacrimejantes de fotofobia, como quem entra num alcácer de fadas, em epifania de menino solitário. E ali, numa tarde, Mauro viu que o sol fazia faiscar alguma coisa no chão. Era uma moeda. Um centavo, Brasil, 1969. No verso, Minerva ou a República olhava, com seu olhar vazado, para o lado, não para ele.
Dinheiro. Cantina. Balas quadradinhas e moles de framboesa.
Detrás do balcão, gigante sem pé de feijão, estava o cantineiro, de nome Donato. Gritava os pedidos com voz de quem xinga alguém do outro lado da rua:
– Uma esfirra aqui pra menina!
– Uma coca sem gelo ali pro rapaz!
E ia para lá e para cá, parecendo caçar briga com a geladeira, com o chapeiro, com o caixa. Demorou um pouco até que visse tudo o que aparecia de Mauro acima do balcão: seus cabelos e olhos. Trovejou:
– E você? Quer o quê?
Com as pontas dos dedos, Mauro escorregou a moedinha sobre o mármore gasto.
– O que isto compra?
Donato teve que descer a cara até perto do dinheiro para enxergá-lo, e era como se um provolone alienígena descesse do teto. Mas levantou a cabeça muito depressa.
– Um centavo? Isso não compra nada!
Mauro teve a impressão muito desagradável, que depois se repetiria pela vida, de que estava sendo acusado de alguma coisa.
– Nem uma bala?
– Uma bala custa cinco centavos! Junte mais quatro e volte!
– Nem um pedaço de bala?
Donato não respondeu. Pegou a coca sem gelo do rapaz ali e foi levá-la, já esquecido de Mauro e de seu esquecível centavo.
Aquele centavo inacreditável não pesava nada na mão de Mauro, que foi saindo sem entender como era possível haver dinheiro que não compre nada. Era dinheiro; mas não comprava. Tinha uma deusa estampada, mas, meu Deus, será possível que uma deusa seja assim inútil, assim à toa? Ela não podia dar ordens ao Donato?
Enquanto subia as escadas para a sala de aula, ouvindo aqui e ali gritos de zoreba! Zoreba!, Mauro olhava o centavo. Chegando ao patamar lá em cima, cansado de segurá-lo na palma da mão suada, atirou a moeda por cima do corrimão, para o pátio lá embaixo, um pouquinho surpreso de perceber que também se podia jogar dinheiro fora.