35. Batismo de ruas - feminino de faraó - cartas abertas - boa educação - Olavo de Carvalho - São Paulo
Sim, eu gosto do Olavo de Carvalho
Conheci um sujeito que trabalhou na prefeitura de São Paulo, ali entre o final dos anos 80, começo dos anos 90, salvo engano na primeira administração do PT, numa secretaria qualquer cuja atribuição, entre outras, era cuidar dos nomes das ruas. O serviço desse meu conhecido, sujeito, já adianto, muito mentiroso e exagerado, era digitar uma lista datilografada, um tal banco de nomes de pessoas, coisas, bichos, obras artísticas e inspirações poéticas variadas que serviriam para, hum, batizar logradouros.
(Esse, e só esse, era o serviço do rapaz, servidor concursado. Uma sinecura, dirá o amigo; sim, responderei eu, uma sinecura. Do meu ponto de vista, desesperadora, mas sinecura.)
Agora, saiba o amigo que todo candidato a ter seu nome numa rua deve, primeiro, estar morto, e, segundo, ter uma qualificação. Peguemos aí o exemplo do Guimarães Rosa, que, parece, já morreu, e que, parece também, escreveu uns livros. Ele figurará na lista como João Guimarães Rosa, escritor. E assim outros: Artur Vautier, benemérito; Ana Néri, enfermeira; Cleópatra, faraóa. Assim nomeado, qualificado e listado, o candidato aguardará ordeiro que alguma rua precise de nome, e que algum vereador o meta no projeto de lei que nomeará a rua.
O meu conhecido, à parte vagabundo, era um tipo criativo, e, como tal, encheu a lista de suas criações. Uma delas foi meter nela o nome de seu amigo W. C. Oliveira com a qualificação alcagüete.
Ele também se dizia responsável pela rua de nome Borboletas psicodélicas, mas isso – ao menos isso – eu acho que era mentira.
* * *
Em tempo: eu fui ao dicionário e é verdade, o feminino de faraó é faraóa, com ó aberto e não, como eu sonhava, fechado (faraôa).
Em tempo, em tempo: a rua das Borboletas Psicodélicas fica no Jabaquara, bairro mais psicodélico do que Santana, mas menos do que a Vila Madalena.
* * *
Há uma lei, ou até mais de uma, para garantir – sim, as leis brasileiras têm essa pretensão absurda de garantir as coisas – o sigilo das comunicações, o que inclui, por óbvio, a correspondência. Quer dizer: se acontecer de eu mandar uma carta ao amigo, só o amigo poderá abri-la e lê-la. A menos, é claro, que o amigo, de tão irado ou lisonjeado, decida mostrá-la aos outros.
Ora, a carta aberta é uma carta que o remetente decide mostrar aos outros.
– Olhem, olhem todos o que eu vou esfregar na cara do fulano!
É como ir dar barraco na porta da casa ou do trabalho de alguém.
É feio.
* * *
A maioria dos brasileiros desconfia da boa educação porque acha que tudo o que não for grosseria é hipocrisia.
* * *
Perdi meu emprego de técnico de telecomunicações em outubro de 2001, meu annus horribilis. Com 35 anos, formação nenhuma (era técnico prático) e família para sustentar, fiz, ao mesmo tempo, vestibular para a faculdade de letras, e prestei concursos públicos. Em 2002, consegui tanto a vaga universitária quanto emprego público. Eu era vagamente de esquerda e ateu. Quando terminei a faculdade, em 2008, já era a mistura incerta de liberal com conservador que sou hoje, e voltara a crer em Deus.
Entre as razões dessa mudança brusca estava Olavo de Carvalho e o livro dele chamado O jardim das aflições.
Alguns dos universitários com quem eu me dava costumavam ir ao perfil que o Olavo (ou alguém em nome dele) tinha no Orkut para escrever que é ok beber a própria urina; achavam aquilo muito esperto, muito engraçado, e talvez esperassem que eu fizesse a mesma coisa. Inesperadamente, porém, encontrei na biblioteca da FFLCH um exemplar de O jardim das aflições, e, em vez de ir ao Orkut reiterar as qualidades dos drinques de mijo, o peguei para ler. E eis que o tiro dos amigos universitários saiu pela culatra.
Esse é um dos três ou quatro livros que, de fato, mudaram a minha vida. Por ser bem escrito, sim (isso pesa demais para mim); por explicar para mim mesmo certas coisas que eu pensava mas não sabia que pensava (coisa que, eu já disse, é típica do grande escritor); mas, principalmente, por desfazer completamente a ideia arraigada, em mim e em tantos outros trintões vagamente de esquerda, de que só imbecis crêem em Deus. Ali estava um homem que cria, e que de imbecil não tinha nada.
Esse homem e esse livro me reconduziram (não me converteram, porque nunca apostatei conscientemente o meu batismo) à Igreja. Prestaram um serviço à minha alma que não tenho como retribuir.
Portanto, obrigado, professor.
* * *
Quando Roma completou a idade que São Paulo completa hoje, ainda faltavam quase trezentos anos para Cristo nascer.
São Paulo é, portanto, um bebê. Um bebê feio, sujo e malvado. Mas também bonito, apresentável e, hum, simpático. Depende do dia, do lugar, do ângulo, da chuva.
O caso é que, enfim, quando se fala do Brasil, São Paulo ainda is where it’s at.
Até semana que vem, amigo. Se ainda houver semana.