36. O que você lia quando... - Camões, Camões - reencarnação - baratos e bagulhos - punks velhos
Acho que vai ter edição extra depois de amanhã folhetinando um conto. Vamos ver.
Há muita literatura a respeito do que você estava fazendo ou ouvindo quando aconteceu tal coisa (levou um pé na bunda, morreu a mãe, caíram as torres gêmeas, etc.). Menos literatura há a respeito do que você lia quando aconteceram essas efemérides. Deve ser porque a leitura, geralmente, atravessa o período: você começa a ler a Divina Comédia em julho, as torres caem em setembro, sua tia morre em outubro, você chora os finados e a República, e só acaba o livro entre o Natal e o ano novo.
(É verdade que você pode ler um livro fino. A viagem à roda do meu quarto, por exemplo, pode ser lido quase todinho durante um velório ou um 7x1. Noites brancas pode ser lido todo enquanto você espera a mulher que vai te dispensar. Mas você me entendeu.)
Às vezes, no entanto, um livro fica cravado numa data. Por exemplo: quando minha filha nasceu, eu lia O planeta do sr. Sammler, do Saul Bellow. A leitura atravessou sim o período: comecei por volta do dia 10 de fevereiro de 1995; ela nasceu dia 20; acabei o livro no comecinho de março, com aquele último (e esplêndido) parágrafo.
Fique claro, amigo: o nascimento marcou o livro, e não o contrário. Sorte minha não estar lendo Paulo Coelho, Paul Auster ou coisa do tipo, porque hoje teria por eles o mesmo carinho que tenho pela ilustração de um sujeito barbudo e meio careca atrás de uma cerca de arame farpado (é a capa do livro) e, claro, pelo próprio Bellow.
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Lendo as três primeiras estrofes d’Os Lusíadas, aprendi que:
Barões assinalados, não assinalados Barões;
força humana, não humana força;
gente remota, não remota gente;
memórias gloriosas, não gloriosas memórias;
terras viciosas, não viciosas terras;
obras valorosas, não valorosas obras;
navegações grandes, não grandes navegações;
peito ilustre, não ilustre peito;
Musa antiga, não antiga Musa;
valor mais alto, não mais alto valor.
É verdade que lá no meio tem ocidental praia e novo Reino, mas olhem o placar: 10 a 2.
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A reencarnação, segundo nos ensinam os teosofistas e seus repetidores, é um mecanismo de aperfeiçoamento do espírito pela reincidência na experiência carnal. Falando em língua de gente: você morre e renasce sucessivamente, experimentando o que o mundo tiver de experimentável, e enquanto isso vai melhorando, se aperfeiçoando. É como tomar lições de piano: a cada tentativa sua execução melhora um pouquinho. A essas melhorias os teosofistas, os espiritistas, e nós, a reboque, chamam evolução. Apenas, o pianista geralmente enxerga o final de seus esforços: a sala de concertos, o estúdio de gravação, o aplauso geral. Já o espírito – eu, tu, eles – permanece sem saber para onde e, principalmente, para que está evoluindo: espera-se somente que, a certa altura, perceba.
Também dizem teosofistas, espíritas e que tais que certas almas, depois de evoluir o Egito dos faraós, o Peru de Montezuma e a França de Marat, vieram dar aquela levantada aqui no Brasil – o que, aliás, se percebe bem.
A seguir, apresento o estado evolucionário atual de certos luminares que, para melhoria do nosso tônus vibracional e status quo moral, por aqui reencarnaram.
Voltaire evoluiu da condição de filósofo iluminista para a de proxeneta e vagabundo. Mora no Ipiranga, tem três filhos, é sustentado pela mulher, é malvisto e malfalado por parentes e vizinhos. O sorriso ainda é o mesmo.
Madame Blavatski abandonou os charutos e as levitações ocasionais. Os brasileiros a impacientam, por isso não pára em empregos nem com namorados. Vende coisas indefinidas que ela mesma, indefinivelmente, faz. É barraqueira. Tem olhos claros e mora em Taboão da Serra.
Edgar Allan Poe parou de beber: agora come. Sol e calor lhe afogam um pouco a melancolia, mas ainda tem gosto por palavras e sintaxe complicadas. Sabe que rima é coisa de parnasiano, mas ainda conta sílabas. Mora em Santana e tem só dois pares de calças. Solteiro.
Jonathan Swift ainda não enlouqueceu de novo, mas esteve perto no terceiro divórcio. Suas propostas continuam modestas: depois do comunismo, hoje ele propõe à sexta mulher que o deixe cochilar em paz. Mora em Ipanema e tem mais de setenta.
Primo Levi tomou o corpo de um vivente em Osasco e saiu de lá rapidinho. Mora na Pompéia, com a mãe atual, perto do SESC (que ele olha com medo – as chaminés).
Charles Baudelaire continua querendo lugar na Académie; pena que na daqui. Mudaram, claro, tanto sua poesia quanto as pessoas que tem que bajular. Subscreveu o Manifesto da Escritorbrás, há alguns anos. Continua magro e ressentido e com uma testa que vai até a nuca. Transita entre Porto Alegre e o Rio; finge desprezar São Paulo.
Thomas Stearns Eliot continua um bom attendant lord, escrevendo discursos para políticos só aparentemente conservadores e sorrindo para mulheres que não lhe sorriem de volta. Desistiu da poesia e da dramaturgia. Mora em Higienópolis, e seu consumo de aspirinas é alto.
Camille Claudel está traduzindo Itamar e Clarice para o espanhol usando pronominação neutra. Mora na Vila Mariana, mas queria mesmo era viver em Itapoã. É jornalista e adora o trugundum de um tambor. Tem uma pulseira no tornozelo, dois filhos, raiva de homens e cabelos pintados de azul.
Flossie Nightingale está fluindo e mora na Zona Leste. Née Vitória, seu nome de pluma social é, claro, Vítor. Vai ser advogado e militar na causa.
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Noite, mercado, Zona Leste. À minha frente, dois cidadãos conversam.
Cidadão 1:
– Uma fila era pá pagá os barato, a ôta pá pegá os bagüio.
Cidadão 2:
– Podicrê, podicrê.
E houve comunicação plena. Claro como olho de norueguês: pagando-se os baratos, pegam-se os bagüios. Ora. E eu duvidei de você, professor Banho.
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Diga lá, amigo: para um punk, fazer 60 anos não é uma espécie de fracasso?
Medite enquanto vai embora esta semana. See ya.