41. Monteiro Lobato; Nastassja; Péter; alteridade; abstrações em forma de mulher; calor; outono.
Nastácia, ok; mas e a Pafunça?
O primeiro livro que li foi a adaptação de Monteiro Lobato para o Peter Pan, de James Barrie. O ano foi 1976; era um volume dos anos 50 (não muito velho portanto), da Brasiliense, com capa de Augusto Mendes da Silva e ilustrações, todas muito belas, de André LeBlanc.
Dona Benta lia o livro para seus netos, rinocerontes, porcos e sabugos nobres; enquanto isso, Emília, com uma tesoura, ia esburacando a sombra da Tia Nastácia; depois, ia colando os pedaços com sabonete, como se fazia antigamente com dinheiro rasgado. Esse negócio de colar com sabonete, aliás, deve ser desconhecido das novas gerações (e não presta mesmo, não cola de verdade).
Achei o livro no meio das guitarras abandonadas de um primo. Li em dois dias (eu tinha muito tempo livre em 1976; aliás, infância que não tenha muito tempo livre não é infância).
As pessoas se esquecem, ou não sabem mais, que Lobato é um grande page turner. Se lê com facilidade, com avidez. E ensina tanta sintaxe do português, é tão antimodernista, que quem o lê não tem dificuldade nenhuma depois com Machado, com Camilo, com Eça, com nenhum desses clássicos que, lidos sem Lobato, causam choro e ranger de dentes.
Restaurare omnia in Lobato, uma saída para a alfabetização brasileira.
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Ler, entretanto, é coisa que nunca se termina de aprender.
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A capa do Augusto (AVGVSTVS) é esta:
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Curioso como, no Brasil, um nome de princesa ou de rainha russa virou nome de empregada. Mesmo todo o mundo vendo a Nastassja Kinski no cinema.
Nastácia, Nastácia, Nastácia, que pena, Nastácia, que nossa amizade ficou pras traças.
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Chamava-se o Píter Pan de Péter Pan, inclusive na dublagem do desenho de Disney. Até hoje, quando distraído, falo Péter, como um russo há de falar.
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Mas chega de Rússia, caramba.
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Nos meus tempos de faculdade de letras (2002-2008) ainda se falava muito na alteridade. A alteridade isto, a alteridade aquilo, a alteridade fazendo e acontecendo, e eu sem saber direito quem era essa dama. Na verdade, eu seria capaz de entender o que é a alteridade, se (ui) a tanto me dispusesse; mas (ui, ui) a tanto não me dispus, e fiquei sem saber.
Agora, se o ignorante raramente é infeliz, o ignorante com um fiapo de imaginação nunca o é: comecei a brincar (eu brincava, mas só eu ria) dizendo que alteridade é o nome científico dos calços para mesas, cadeiras e portas.
Também brincava (e ria sozinho) que a Alteridade era Amélia, mulher de verdade, e seria possível dar com ela numa quitanda comprando favas brancas a granel, ou no açougue pedindo para tirar a pelanca do acém, ou comprando batom barato de camelô.
(Eu sou do tempo em que camelô vendia batom, anel, perfume barato. Acho que ainda vende. Aliás, me arrependo um pouco de ter falado mal do Aldir Blanc.)
A Alteridade de dia é uma e à noite é outra.
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Se você pronunciar bem rápido, alteridade soa como autoridade. Se você pronunciar muito devagar, também.
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Se todas essas abstrações fossem mulheres:
A Liberdade, em casa, usa quimono e sandálias felpudas.
A Fraternidade, como uma diva dos anos 20, fuma piteira.
A Sororidade vai atrás do Olodum.
A Democracia tem, ao mesmo tempo, dó dos ratos e dez gatos.
A Justiça não é cega, mas dispensa a lupa.
A Felicidade não consegue dar jeito nos cabelos.
O Idealismo é trans e usa o nome social Idealidade.
A Igualdade tem síndrome do pânico.
Mas se todas fossem mesmo mulheres, cada teórico francês charlatão teria o seu harém.
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– E até quando acredita o senhor que podemos continuar neste calor do caralho?
Orlandino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e quatro anos, nove meses e vinte e cinco dias com as respectivas noites.
– Por mim, nem mais um segundo – disse.
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Não sei como será aí na sua cidade, amigo; aqui em São Paulo a gente percebe o outono, o outono mesquinho dos trópicos, pela cor da luz. Quando a cor da luz começa a mudar, ali pelos idos de março, e a ficar mais pálida, especialmente no fim da tarde, a gente percebe que o pior do calor já passou: haverá mais vento, e a queda da noite será precedida de uma melancolia que você não achava possível nesta cidade. Isto vai até os idos de agosto, quando as tardinhas frias e claras são constantes e você caminha por aí com as mãos nos bolsos, afastado do inferno, humano de novo.
Já está começando. Aproveite, e até mais ler.