45. Os ex; câncer e chocolate; os gols do gordão; o velho e o pombo
Os dois últimos textos são bem velhos, de mais de vinte anos (mas inéditos).
Um rei que fosse destronado, mas não morto, seria chamado, digamos, de o ex-monarca de Patacóvia.
Um ministro demitido seria chamado de ex-ministro do corte e costura.
Presidente, governador, senador, deputado não reeleitos: ex-presidente, ex-governador, etc.
Técnico demitido: ex-técnico do Comercial da Capital.
Dave Mustaine defenestrado: ex-guitarrista do Metallica.
Qualquer aposentado: ex de sua profissão ou esporte (ex-lixeiro, ex-cozinheiro, ex-Umbabarauma homem-gol).
Namorado(a), noivo(a) ou esposo(a) dispensado(a): ex, só.
É uma descendente. Que chegou ao centésimo milésimo nono círculo do érebo quando apareceram os ex-BBB.
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Noutro dia vi numa rede social uma menina que comprou, pagando caro, uma barra de chocolate arredondada, que chamou de ovo de páscoa 2D (talvez tenham-lha vendido com esse nome mesmo, aliás). É um pouquinho ridículo, sim. OK, é mais do que um pouquinho ridículo.
Mais eis então que alguém comentou desejando que a menina pegue câncer por gastar o dinheiro dela bobamente enquanto milhões passam fome por aí.
Imagine que agora as pessoas desejam câncer a quem compra chocolate, quer redondo, quer meio caro. Cuidado portanto com a mania de cheirar flores, de passar manteiga demais no pão, de não comer a pele do frango, de olhar nuvens, de ler gibis, de passar um segundo só de sua vida sem se atormentar horrivelmente com tudo o que aflige o mundo. Câncer para você, amigão.
(E depois disso, ou ao mesmo tempo, ainda teve a polêmica da moça que tem pai, e pai que lhe dá sorvete – duas manifestações revoltantes de riqueza e felicidade, destinadas a causar mal-estar e dor aos que não têm nada disso. Câncer.)
Dizem que em rede social só se entra de máscara. Melhor começar a usar escafandro.
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Nunca soube o nome dele. Lembro que era gordo, mas não tão gordo que não coubesse dentro de um uniforme de futebol. Cabia afinal; mas ficava feio, a camisa toda agarrada, umbigo de fora, correndo com as pernas abertas por causa das coxas grossas demais. Corria pouco, é verdade.
Era meio velhão também. Mais de quarenta, com toda certeza, como a careca evidenciava. Era uma espécie de Stanley Matthews da várzea, só que sem dribles, sem passes espetaculares, sem cruzamentos. Só batia falta. O negócio dele era bater falta.
No dia em que o vi, um sábado à tarde qualquer no fim dos anos setenta, o Esporte Clube Vigor (que era o time dele) jogava com algum time do outro lado do Tietê, talvez da Vila Guilherme. De repente, falta pro Vigor. O velho Güerino falou pro meu pai:
— Presta atenção, que o gordão é filho da puta. Dali é gol.
E foi gol mesmo. Ele pegou de chapa: a bola fez aquela curvinha elegante no ar, passando bem acima da barreira, caiu no ângulo direito do goleiro e fez aquele tuf! de bola na rede que a gente ouve ainda nas canchas pequenas (e na várzea, quando há rede). Fiquei ligado no velho gordo o resto do jogo, torcendo para que houvesse mais faltas, querendo ver de novo o velhote desengonçado metendo o pé na bola e jogando pra dentro do gol. Ou da vala; ainda se chamava o goleiro de guarda-valas. Mas não mais de keeper.
Digressão: para meu pai e minhas tias, não havia locutor – havia espíque. Ou speaker. Também não havia placar, mas escore. Placar é galicismo, placard. Escore, anglicismo: score. E também já as ouvi falando match. Eu gosto de match: dá a impressão de que todo jogo é um tira-teima. Anglicismos e galicismos, aprendi, eram vícios de linguagem: melhor não usá-los. O jornal O Estado de São Paulo foi quem inventou, ou pôs para circular por aqui, a terminologia nacional do futebol: back virou zagueiro; wing, ponta; center-forward, centroavante; half, meia, volante ou, dependendo do jeito que jogava, ponta-de-lança (mas era mais volante mesmo: arrecuá os árfe pra evitá a catastre era a retranca, ou o ferrolho); referee virou juiz; linesmen, bandeirinhas. Tudo muito ajeitadinho, pegou no ato. A Folha, quando resolveu intervir, décadas depois, apareceu com o lamentável assistência, que derrubou o “passe para gol” e a poética (e muito mais justa) expressão “servir com açúcar”.
Bom, naquele match, o pobre keeper da Vila Guilherme não impediu mais um tento do gordão. De novo de falta. Meu herói naquela época era o Jorge Mendonça, negrão bom de bola do Palmeiras que conseguiu barrar o Zico na seleção (por um jogo só, mas barrou), também danado pra fazer gol de falta. Saí do clube falando pro meu pai que o gordão era igual ao Jorge Mendonça. Meu pai ria: “Cê tá louco, moleque”. É, eu estava.
Outra digressão: tento vem do rugby, try. Assim como o impedimento: a bola só pode ser passada para jogador que esteja atrás do passador, e portanto atrás da linha da bola. Uma vez perguntei ao meu pai para que servia o impedimento.
— Para ter jogo. Se não houver impedimento, você deixa o centroavante marcando o goleiro, e o jogo vira só chutão pra frente.
Eram umas quatro da tarde. Barganhei e consegui um eski-bon de caixinha azul e fiquei com a cabeça cheia de bolas. Quis ser jogador de futebol, herói do jogo, Botafogo; queria ser aquilo que não era e para que não dava, numa idade em que se pode querer essas coisas de modo impune, idade em que sonhos não viram castigo. Sorvete na boca e gols na cabeça, nem via o sol se pondo mais cedo em maio. A mesma sensação daquela tarde voltaria poucos meses depois, desta vez tendo uma menina no lugar dos gols. Pai, Jorge Mendonça, sorvetes, gols, meninas: paixão é paixão.
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Era um velho que ficava discutindo com os pombos no seu banco de praça. Com os pombos não: com um pombo. Um lá de que ele não gostava. Isso acontece entre pessoas: às vezes pegamos birra de alguém sem razão; alguma coisa na pessoa, no jeito dela, nos enche de antipatia prévia, não nos deixa gostar dela. Era o caso dele com aquele pombo.
Todo dia o velho, decerto aposentado, levava farelo de pão velho para dar aos pombos no parque; e, no meio deles, vinha aquele pombo, branco rajadinho de caramelo, olhos amarelos, bico vermelho e preto. Não fazia nada de diferente dos outros, mas o velho implicou com ele logo de cara.
— Que camarada antipático!
O pombo comia, rápido como todos, sob o olhar de desaprovação do velho.
— Sujeitinho desagradável!
Piorou dias depois, quando esse pombo roubou o farelo do bico de outro. Isso vivia acontecendo no meio dos pombos, um tomando de outro, mas o velho só notou quando foi aquele pombo que roubou.
— Canalha!
Apontando o dedo enrugado, gritou:
— Eu não admito isso por aqui, está me ouvindo?! O senhor mude o seu comportamento, entendeu? Safadeza não!
Assustados, todos os pombos fugiram. Pensando no assunto, o velho concluiu que os pombos são bobos que nem crianças: grita-se com um, e eles acham que estão gritando com todos. Logo viu que, se continuasse esbravejando, os pombos iam acabar por abandoná-lo. Por causa de um assim mais mau caráter, se arriscava a perder a companhia de toda uma boa comunidade.
Tinha que mudar de tática. Passou a fazer ameaças em voz baixa ao pombo.
— Eu te pego, seu safado.
— Vou te depenar, vagabundo.
— Vou te meter na panela.
— Pode esperar, sacripanta.
O pombo nem ligava. Os que passavam pela praça e o ouviam pensavam: outro doido. E iam embora dando risada.
A mocinha desconhecida e ingênua que sentou-se por acaso ao lado dele no metrô e ouviu a história toda perguntou:
— E por que o senhor não mudou de praça ou de banco?
— De jeito nenhum. Eu prezo muito a todos. Não é por causa de um que eu vou desistir dos meus amigos.
— Amigos? Mas são só pombos.
— Amigos, sim. E os pombos não são diferentes das pessoas. Absolutamente. São só mais infantis.
A mocinha quis rir e não conseguiu. Na verdade, o último comentário dele lhe pareceu tão natural que ela temeu estar ficando meio doida também:
— Preciso dar um jeito de falar com os outros. Longe dele, entendeu? Só eu e os outros. Pra gente ver o que faz.
Não sei se falou, amigo. Como a mocinha do metrô, espero que sim. Na verdade, até acho que falou, mas não adiantou: os pombos, como os argentinos, não dão bola pros de fora. E espero ainda que o meliante (o canalha, o safado, o vagabundo, o sacripanta) não tenha sido depenado, mas reeducado. Reeducar, aliás, é o propósito nobre da nossa sociedade – e da sociedade dos pombos, por que não?
E, não reeducado, mas educado apenas, me despeço com um até breve, um abraço, e desejos de saúde à sua família.