51. Ler; leitores de menos; leitores de mais; epitáfio; contradição; Paulo Francis, bondes e lembranças; bunker; obsessão; già ho l'età
Basicamente: sei lá
Escrevo esta newsletter há quase um ano, mas, se me o amigo me perguntasse – e vamos fazer de conta que perguntou – o que eu gosto mais de fazer, ler ou escrever, respondo de cara que é ler. Leio desde que me conheço por gente, e fico inquieto se tiver que passar muito tempo em condução ou à espera de alguma coisa ou de alguém sem ter nas mãos livro, revista, gibi, kindle, bula de remédio, folheto do Universo em desencanto, ou qualquer outra coisa que contenha palavras escritas. Diria que é um tipo de vício.
Supondo que o amigo seja também viciado, e há de ser, uma alegria que eu tenho é a de ser seu ocasional traficante, seu pusher.
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Vivendo no Brasil, não somos muitos os que deitamos neste antro de ópio. Somos poucos, e minguamos, e, sabemos todos por algum tipo de experiência própria ruim, somos uns esquisitos.
Minha filha me contava que, nos tempos de colegial, ou o que hoje chamam de ensino médio, seu (bom, caro) colégio dava os livros do vestibular da Fuvest para os alunos lerem; fazia parte do material didático. E dava, aos sábados, aulas de reforço, pagas à parte, em que os professores falavam sobre os livros. Essas aulas de reforço eram frequentadas por uns oitenta por cento dos alunos que, depois dela, iam ao shopping, ao cinema, etc. Certo dia, combinavam o evento e falaram com a minha filha.
— Ah, encontro vocês no shopping tal às duas – disse ela.
— Ué, não vai na aula? – quiseram saber.
— Eu não. Eu li o livro.
— Você leu o livro?!?!
O espanto, diz ela, era genuíno, não era gozação. Não lhes tinha ocorrido, ou, se tivesse, seria como coisa ridícula, ler o livro. Haveria uma aula sobre ele; alguém o explicaria – contaria a história, nomearia os personagens, diria o movimento literário de que fazia parte, biografaria o autor. Por que diabos perder tempo lendo a coisa? Eles começaram a achá-la meio esquisita (ou pobre demais para pagar a aula, o que era parcialmente verdade, e portanto, naquele colégio, também coisa meio esquisita).
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Mas é claro que há gente que lê – digo, gente diferente de nós, amigo, e que lê umas coisas que nós evitamos, de modo muito consciente, ler. Gente que lê, caso a expressão caiba, com assiduidade coisas de que não queremos nem passar perto. O Tô tarado vendeu muito; os livros de moda (ultimamente, pelo que vejo em exposição, feminismo e autoras negras) vendem bem; a literatura psicogarfada também vende bem; e todos esses manuais disso e daquilo, vademecuns, livros didáticos, de autoajuda, de ficar rico, de como ser bom chefe ou bom funcionário, de explicações de tudo, fazem sucesso.
Ou seja: sei lá.
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Aliás, esse podia ser o meu epitáfio: sei lá.
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Enfim, acabei por me desdizer. O diabo de sair escrevendo antes de pensar, ou de pensar à medida que se escreve, é este: começar no grau zero e dar no grau cento e oitenta.
Não copie esse meu hábito, amigo. Ou copie. Sei lá.
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Paulo Francis contava que se tornou ateu agarrado a um estribo de bonde. Pendurado lá, meditou sobre a existência de Deus, arranjou os argumentos em ordem e chegou ao resultado: Deus não existe, chega disso, mudemos de assunto.
Eu não tenho inveja nenhuma da conclusão, mas tenho inveja de quem já andou de bonde, e andou assim: pendurado no estribo, tomando vento, bagunçando os cabelos no meio do barulho (tenho a crença de que bonde é coisa barulhenta). E filosofando, pensando consigo mesmo coisas profundas. Ou pensando só besteira, que sei? (Hoje estou assim, reparou?, me contradizendo a cada linha.)
São Paulo teve, até o final dos anos 60, uns bondes vermelhos que eram apelidados de camarões. Meu avô Samuel foi arrastado por um desses bondes que arrancou antes que ele acabasse de descer, em 1962, e morreu por não se recuperar dos machucados.
Devo ter andado em algum deles: nasci em 67, acabaram em 68 ou 69. No meu tempo de moleque, ainda havia muitas ruas calçadas de pedra, de paralelepípedos, no Brás, onde nasci e cresci; e, em muitas dessas ruas, havia nas pedras os sulcos onde antes ficavam os trilhos dos bondes. Noutras, cobertas de asfalto, tiveram preguiça de tirar os trilhos, que apareciam conforme o betume se desgastava.
Não sei que idade tem o amigo, se já morou ou já esteve em rua calçada assim; aposto que sim, mas vá saber. Em todo caso, digo-lhe que uma coisa que me ficou de uma infância não muito feliz é o som da chuva fraca em cima dos paralelepípedos, e também o som das rodas dos carros sobre eles quando molhados. Nos anos 70 São Paulo ainda era um pouco a São Paulo da garoa; e ainda fazia frio por dias a fio, doze, quinze dias de gelo e chuvinha. Eu tinha o gosto de sair à rua nesse tempo, soprando para ver meu hálito enfumaçado, andando por ruas hoje inimaginavelmente vazias e silenciosas, ouvindo o gotejar nas pedras, o shhhhhh dos pneus passando devagar por elas.
São Paulo já não tem mais ruas assim, ou talvez as tenha em recantos que não conheço. Mas eu queria viver de novo num lugar assim, ainda que por apenas um inverno.
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Se eu montasse para mim um bunker ou refúgio só de lembranças boas, seria tão estranho quanto um desses lugares com que a gente sonha, nos quais se vai do pólo à praia com um pulinho, ou apenas abrindo uma porta.
Qualquer dia falo da praia. Ou do que a valha.
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Se o amigo se der o trabalho de ler minha primeira newsletter, de quase um ano atrás, verá que falo do meu aniversário, e de como um estudo qualquer indica que os homens só se tornam adultos aos 54.
Bem, recém fiz 55. Tenho pois um ano de adulto. Coincidentemente, quase um ano de newslettereiro.
É coincidência.
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Aliás, as pessoas que dizem que não há coincidências talvez tenham razão, talvez não; tendo ou não (e eu espero que não tenham), fazem de Deus um obcecado. Ou fazem com que ele trabalhe tanto que o transformam em Alá, pai dos mouros.
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Um pedido conjugando um verbo inventado agorinha: amigo, desobcequemo-nos.
Ah, e também não fiquemos usando o basicamente à toa. Usemos quando a coisa for básica mesmo, o que, na verdade, não é tão comum assim.
E até mais.