61. Outro virundum; fascismo; intuição; descrição do indivíduo; poliamor e poliplatonismo; uma tradução de Chesterton; um link
O Chesterton vai, com um abraço, pro André Falavigna
Tome o amigo nas fuças outro virundum. Há alguns anos – sempre que eu digo alguns, amigo, são mais de vinte – havia uma propaganda na TV de uma espanhola dançando flamenco, toda bonita, ao som de uns violões meio selvagens. Era do conhaque Domecq, de quem o sr. Honório Bustos talvez fosse herdeiro. Bem, a espanhola dançava e cantava, e levou um tempo para entendermos que a letra da música era “Domecq, Domecq” e não, como ouvíamos, “Djovem, djovem”. E olhe que éramos djovens. Ou não tão vedjos.
Ah, o “Domecq, Domecq” era seguido de um “le-rê-rê-lê-rê-lê-rê” que, esse sim, entendíamos direitinho.
* * *
Quando eu era jovem e ingênuo, achava que, a exemplo do Mussolini, fascismo tinha a ver com uniformes, nacionalismo, impaciência e gritaria: Che, Mao, Fidel, Tchábez, os National Kids da Coréia do Norte, etc.
Agora, que cresci, entendi que fascista é quem resmunga quando troca os vidros que o progresso anda quebrando.
* * *
Minha intuição me diz que…
— Oi, Orlando.
— Oi, Intuição.
— Tenho uma para você.
— Manda.
— Saque todo o dinheiro que você tem aplicado e compre chia.
— Chia?
— Chia. É o futuro.
— Olha, Intuição: primeiro de tudo, eu não tenho um tostão aplicado em lugar nenhum. Sou durango.
— Ô, Orlando.
— Sendo minha, você não devia saber disso?
— Não. Intuição não é bem conhecimento. É intuição.
— Segundo: chia? Chia?!
— É o futuro.
Eu não confio na minha intuição.
* * *
No trabalho.
— Você nunca viu o sujeito?
— Nunca vi. Como ele é?
— Parece um pinguim com AVC.
* * *
Gilberto tomou entre as suas as mãos de Jennifer Aparecida e Kellen Kátia e disse:
— Somos um trisal?
— Somos um trisal – responderam as duas.
— Um trisal sem mácula?
— Um trisal sem mácula – responderam as duas.
— Um trisal platônico?
— Um trisal platônico – responderam as duas.
— Portanto, o nosso poliamor é poliplatônico – disse Gilberto.
E puft!: na mesma hora, no outro sofá, surgiram, apertados, togados, descalços e barbudos, três Platões.
— Boa noite – disseram, educados, os três Platões, e as três vozes soaram como se fossem uma só.
— Que diabo é isso? – perguntou Gilberto enquanto Jeniffer e Kellen, assustadas, agarravam-se a ele.
— Isso não, porque isso designa uma coisa só, e aqui há três coisas – começou um dos Platões.
— Melhor dizendo, três pessoas, não três coisas – continuou o segundo Platão.
— Dizendo melhor ainda, três Platões, e não meramente três pessoas, que podem ser três pessoas aleatórias, como, por exemplo, três guardas de trânsito, ou três açougueiros, ou dois jogadores de futebol e um malabarista, ou... – disse o terceiro Platão.
— Portanto, um Poliplatão – atalhou o primeiro Platão.
— Três Platões, por Apolo – disse o segundo Platão. – Você mesmo acabou de dizer que não somos uma coisa só.
— Talvez a gente possa dizer que é um Triplatão, não um Poliplatão, que teria que ser mais do que três – disse o terceiro Platão. – Porque, vejam, o que temos aqui é um tri e não um polisal. Teria que haver mais gente...
Gilberto achou melhor cortar.
— Sejam quantos forem, sejam quem forem: ninguém chamou vocês aqui. Caiam fora.
— Não podemos – disse o primeiro Platão.
— Quando vocês fazem… formam… enfim, quando a coisa vira platônica, é preciso que venha um Platão – disse o segundo Platão.
— E no poliamor poliplatonista, vem um Platão para cada… hum… poliamoroso… ou poliamante… ou poliafetivo… ou... – disse o terceiro Platão.
— Meu Deus – disse Gilberto.
— A propósito – disse o primeiro Platão –, estamos com fome.
Seis pizzas depois, os Platões adormeceram no sofá, sentados, colados uns aos outros. Gilberto, Jeniffer e Kellen foram para o quarto, onde havia três camas de solteiro.
— Temos que botar esses caras para fora – disse Gilberto.
— Como? – perguntou Jeniffer.
— Bom, se eles aparecem quando a coisa é platônica, acho que a gente vai ter que desplatonizar a nossa relação.
— O que isso quer dizer? – perguntou Kellen.
— Que vamos ter que macular nosso trisal – disse Gilberto.
— Quer dizer que a gente vai ter que transar – disse Jeniffer.
— Isso mesmo – disse Gilberto.
— Tô fora – disse Kellen, saindo do quarto.
— Tô dentro – disse Jeniffer. – Aliás, já era hora.
Quarenta minutos depois, Gilberto e Jeniffer passaram pela sala no rumo da cozinha e viram que no sofá havia agora dois Platões, o primeiro e o terceiro. Os dois acordados. Kellen estava sentada no colo do terceiro, a cara vermelha de riso.
— Gente, este Platão é um safado! Está me falando de piroca!
— Apeirokalia, menina – disse o Platão, sorrindo o sorriso sábio dos Platões.
— Viram? Piroca!
— Por que tem dois Platões? – quis saber Gilberto. – Não devia ser só o da Kellen?
— Não – respondeu o primeiro Platão –. A sua relação com Kellen ainda é platônica, então continua um Platão para cada.
Jeniffer olhava com cara feia para Kellen e seu Platão.
— Quer dizer que agora só eu fiquei sem Platão, é isso?
— Aiiii, meu Platãojinho liiiindo! – disse Kellen, apertando as bochechas do seu Platão. Que ficou vermelho. – O que mais você sabe, afora piroca? Me fala.
Jeniffer puxou Gilberto a um canto.
— Você dê um jeito de comer ela hoje. Dê um porre nela, drogue, pegue à força, faça o que tiver que fazer, mas acabe com esse platonismo hoje.
— Ficou maluca? – perguntou Gilberto, que é do tipo de desenha a barba.
— Malucos estão vocês se acham que eu vou deixar ela ficar esfregando o Platão dela na minha cara desse jeito.
Para resumir: Gilberto não fez nada. Jeniffer foi embora, e hoje na casa mora um casal simples e platônico, e dois Platões que comem muito, não tomam banho, e cuja conversa nem sempre é fácil de entender.
— Devemos distinguir três tipos de sushi – dizia um Platão.
E Kellen:
— Ai, eu gostava mais deles quando falavam de piroca.
E nunca aceitava as insinuações de Gilberto para resolver a situação.
— Resolva sozinho.
* * *
Como encontrei o Super Homem(*)
G. K. Chesterton
Daily News, 1909
Os leitores do Sr. Bernard Shaw e de outros escritores modernos talvez gostem de saber que o Super Homem foi encontrado. Eu o encontrei; ele mora em South Croydon. Meu sucesso consistirá numa decepção grande para o sr. Shaw, que, seguindo uma pista falsa, foi procurar a criatura em Blackpool; e, quanto à expectativa do Sr. Wells de gerá-lo em laboratório com a ajuda de uns gases, olha, eu sempre disse que não ia dar certo. Assevero ao sr. Wells que o Super Homem de Croydon foi gerado e nasceu pelas vias normais, embora ele mesmo, é claro, não tenha nada de normal.
Já seus pais são totalmente dignos do ser maravilhoso que trouxeram ao mundo. O nome de Lady Hypatia Smythe-Brown (agora, Lady Hypatia Hagg) nunca será olvidado no East End, graças à sua esplêndida atividade social. Seu brado constante de "Salvem as criancinhas!" era proferido para combater a negligência cruel que expunha os infantes a brinquedos de cores feias. Brandindo estudos e estatísticas infalíveis, ela provava por a+b que crianças expostas ao roxo e ao vermelhão acabavam cegas na velhice; e foi graças à sua cruzada incessante que o maldito carrinho de bombeiro foi quase erradicado em Hoxton. Suas boas ações foram interrompidas, em parte graças ao novo interesse dela pelo Zoroastrismo, e em parte por uma surra selvagem de guarda-chuva. A tal surra lhe foi dada por uma dissoluta vendedora irlandesa de maçãs, a qual, voltando para casa vinda de alguma orgia, encontrou Lady Hypatia no seu quarto, tirando da parede uma gravura que, para resumir, nada tinha de edificante. Foi aí que a celta ignorante e meio bêbada deu na reformista social uma tremenda tareia, acrescentando a isso uma acusação absurda de roubo. O equilíbrio delicado da mente da Lady sofreu um choque; e foi durante a sua enfermidade mental que ela se casou com o Dr. Hagg.
Do Dr. Hagg creio que não há necessidade de dizer nada. Quem quer que esteja vagamente familiarizado com as experiências em Eugenia Neo-Individualista que são atualmente a única preocupação da democracia Inglesa, conhece seu nome e pede a um poder espiritual impessoal que o conserve e proteja. Cedo na vida ele usou sua intuição brilhante, que lhe deu fama como engenheiro elétrico, para estudar a história das religiões. Depois, tornou-se um dos nossos maiores geólogos; e alcançou aquela visão forte e luminosa do futuro do Socialismo que só a geologia pode dar.
No começo, parecia que havia algo como uma rachadura – uma fina, mas perceptível, fissura – entre as suas idéias e as de sua esposa aristocrática. Porque ela era a favor (nas palavras dela mesma) de que se protegesse os pobres deles mesmos; já ele declarava, impiedoso, usando de uma metáfora nova e agressiva, que os fracos têm mais é que se lascar. Seja como for, o casal mantinha-se unido na modernidade irrefreável dos seus pontos de vista; e, nessa expressão iluminada e altruísta, suas almas encontraram a paz. Como resultado, essa união dos tipos mais elevados da nossa civilização – a dama mundana e o médico invulgar – foi abençoada com o nascimento do Super Homem, o ser que todos os operários de Battersea tanto esperavam.
Encontrei a casa do Doutor e de Lady Hypatia Hagg sem muita dificuldade; fica numa das ruas mais distintas de Croydon, embelezada por uns tantos pinheiros. Cheguei quase ao pôr do sol, e era natural que eu fantasiasse ver algo de escuro e monstruoso no vulto mal iluminado daquela casa que continha uma criatura mais maravilhosa do que os filhos dos homens. Quando entrei na casa, fui recebido com grande cortesia por Lady Hypatia e seu marido; mas não foi nada fácil ver o Super Homem, que tem cerca de quinze anos e fica sozinho num quarto escuro e silencioso. Nem minha conversa com os pais pôde esclarecer o caráter daquele ser misterioso. Lady Hypatia, que tem o rosto pálido e pontudo, e se enfeita com aqueles tons de verde e cinza com que embelezou tantos lares em Hoxton, não usa, para falar de sua prole, da vaidade vulgar de uma mãe humana comum. Tomei a liberdade de perguntar se o Super Homem é bonito.
"Ele cria seus próprios padrões", ela respondeu com um pequeno suspiro. "Nos termos dele, é mais belo do que Apolo. É claro que, avaliado pelos nossos padrões inferiores..." E ela suspirou outra vez.
Tomado por um impulso horrível, perguntei:
"Ele tem cabelo?"
Houve um silêncio longo e doloroso; então o Dr. Hagg disse, suavemente: "Tudo no plano dele é diferente; o que ele tem não é... bem, não é exatamente o que chamaríamos de cabelo... mas..."
"Você não acha", disse, muito suavemente, sua mulher, "você não acha que, só para efeito de argumentação, na hora de falar com o público, aquilo poderia ser chamado de cabelo?"
“Pode ser”, disse o doutor depois de pensar por uns instantes. “Se bem que, nesses caso, falar em cabelos é quase como falar em parábolas.”
"Bem, que diabos ele tem", perguntei, irritado, "já que não é cabelo? Será que são penas?"
"Não são penas. Não como entendemos a palavra penas", respondeu Hagg com voz horrível.
Irritado, levantei-me. "Posso vê-lo?", perguntei. "Sou jornalista, portanto tudo o que me move são a curiosidade e a vaidade. Adoraria dizer por aí que apertei a mão do Super Homem."
Marido e mulher ergueram-se e me olharam, embaraçados.
"Bem, você sabe, é claro", disse Lady Hypatia com o sorriso charmoso típico da anfitriã aristocrática. "Você sabe, ele não pode exatamente trocar um aperto de mãos... não de mãos, sabe... A estrutura..."
Mandando às favas todas as regras da boa educação, corri até o quarto onde estava aquela criatura inacreditável. Abri; o cômodo estava completamente escuro. De algum lugar à minha frente saiu um guinchado pequeno e triste, e, detrás de mim, um grito duplo.
"Veja o que você fez!", gritou o Dr. Hagg, enterrando nas mãos seu rosto nobre. "Você deixou entrar um vento encanado! Ele morreu!"
Quando fui embora de Croydon naquela noite, vi homens vestidos de preto carregando um caixão que não tinha forma humana. O vento uivou acima de mim, sacudindo os pinheiros, que balançavam como as plumas negras de um funeral cósmico.
"Sabe o que é isso?", disse o Dr. Hagg. "É o universo inteiro gemendo de tristeza pela perda de sua mais magnífica criação."
Pode ser. Mas eu acho que havia um quê de riso no lamento alto do vento.
(*) O Super Homem aqui é o de Nietzsche, não o dos gibis.
* * *
Por fim, atendendo espontaneamente às suaves ameaças de tiro, facada e vodu por parte do autor, dou ao amigo o link para um artigo excelente do Carlos de Freitas no site da Brasil Paralelo:
Um dia na vida de um repórter esportivo.
E até mais ver, amigo (hoje foi dose, hein?).