79. Sintaxe; taxista suicida; a dívida dos credores; Paulo Francis; ACM; propaganda; ilustrações; ADN; Catarì
Eu também gosto do Domenico Modugno
Lendo as três primeiras estrofes d‘Os Lusíadas, aprendi que:
Barões assinalados, non assinalados Barões;
força humana, non humana força;
gente remota, non remota gente;
memórias gloriosas, non gloriosas memórias;
terras viciosas, non viciosas terras;
obras valorosas, non valorosas obras;
navegações grandes, non grandes navegações;
peito ilustre, non ilustre peito;
Musa antiga, non antiga Musa;
valor mais alto, non mais alto valor.
É verdade que lá no meio tem ocidental praia e novo Reino, mas olhe o placar: 10 a 2.
Eu teria votado com gosto em qualquer candidato que prometesse devolver o português do Brasil à sua sintaxe original.
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O táxi pára. O passageiro entra, senta no banco de trás, dá o destino e diz:
— O mundo é uma desgraça e a vida é uma tragédia. Eu queria sumir.
O taxista liga o carro, sorri e diz:
— Sabe que comigo é a mesma coisa? Minha vida também anda uma desgraça, estou de saco cheio de tudo e querendo acabar com a minha vida. Por isso mandei botar este botãozinho aqui no painel…
E mostra um botão vermelho bem em cima do rádio.
— ...que faz o tanque de gás do carro explodir quando eu apertar. Estava só esperando uma alma irmã para não morrer sozinho. Vamos nessa? Bora acabar com tudo?
— Isso aí é zoeira, né? – começa o passageiro, mas seu “né?” é interrompido pelo bum glorioso do táxi em chamas, que ilumina a noite na Avenida 9 de Julho e na Praça 14 Bis.
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Uma vez – faz anos já – vi num painel do metrô o anúncio de que “a dívida dos credores” tinha crescido quase 9%. Li e fiquei apreensivo, achando que não tiveram coragem de dar o quanto aumentou a dívida dos devedores.
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Paulo Francis dizia: “Se as pessoas soubessem as coisas que às vezes eu penso, teriam horror de mim”.
You can say that again, Paulinho.
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Soa estranho eu dizer, mas direi mesmo assim, que uma das razões para a minha volta à Igreja tem a ver com o Antônio Carlos Magalhães. Eis: ali por volta de 2002, quando comecei a faculdade de letras, eu era vagamente de esquerda e, como todas as pessoas vagamente de esquerda que eu conhecia, detestava o Antônio Carlos Magalhães: oligarca, tetrarca, arquimandrita, todo-poderoso dono da Bahia, eminência parda e luminosa de todos os governos, mandador e desmandador de todas as províncias e comarcas, painho e mãinha e tiozinho e avôzinho e padrinho de todas as gentes, dono do apito de ouro da República. E, sendo vagamente de esquerda, eu também era vagamente darwinista: achava que a prevalência do mais apto e que a evolução eram as causas primeiras, senão as únicas, da minha humanidade.
Acabei por perceber que, se eu achava que as coisas eram como Darwin dizia, não podia detestar o Antônio Carlos Magalhães. Não: eu devia era admirá-lo, eu devia louvá-lo. Ele era muito mais capaz, muito mais apto do que eu para se virar na selva ou mundo cão da sociedade brasileira, que, por sua vez, é mera fração da selva ou mundo cão da sociedade humana. Ele era o mais forte e eu o mais fraco; ele era o mais adaptado e eu o menos; ele era o meu predador, e eu a presa dele. Ele não só sobrevivia melhor, como dava as cartas no... como chamá-lo? ecossistema?... em que nós dois vivíamos. Ele devia ser o meu espelho, e não a minha bronca. Se eu tivesse uma meta na vida, essa devia ser me transformar em algo parecido com o ACM.
Era isso, portanto: viver uma vida sem nada de transcendente, sem os olhos postos em algo elevado, implicava em ter Antônio Carlos Magalhães como modelo, como inspiração, como mestre, guru e guia. Ora, uma vida sem nada de transcendente, sem os olhos postos em algo elevado, é uma vida de bosta. Tinha que haver alguma outra coisa, melhor, mais alta, ou então qualquer saída – inclusive o salto elegante do viaduto do Chá até o Anhangabaú, o “adeus, mundo cruel!” – valeria o mesmo que viver a vida de sub-ameba de uma ameba mais poderosa.
E note o amigo que, mesmo no seu auge, o ACM nunca chegou nem perto de ser o que uns e outros se tornaram depois. Não: perto dos de hoje, o ACM era Poliana menina saltitando num prado gentil, era uma enfermeira na guerra, era um doador de córneas e rins, era um filantropo encachaçado, era Midas na terça-feira gorda. Mas quem diria, lá atrás, que o próprio ACM, se tivesse vivido, se tornaria, ele também, a sub-ameba de uma ameba mais do que poderosa, monstruosa? Quem ouviria a Cassandra que a antevisse?
Mas foi o ACM quem me botou a pulga atrás da orelha. E eis que a pulga era um anjo, e o anjo me tirou dessa. Veja bem: não é que eu tenha passado a prestar; é só que parei de achar que o abismo era bonito. Depois, claro, aconteceram mais coisas. Falo delas outro dia.
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Fico aflito toda vez que vejo propaganda de chá ou café em que alguma moça segura uma caneca com as duas mãos. Fia, cê vai se queimar. Segura pela asa.
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Numa hora de almoço, dou um pulo numa livraria. Não há muitos fregueses (ou clientes, que sei eu?), mas, com a minha pouco notável exceção, todos eles têm tatuagens muito visíveis.
Fico imaginando uma distopia engraçada: um futuro em que eu seja tido como iletrado ou analfabeto só por não ser tatuado.
Em todo caso, os novos leitores já chegam ilustrados.
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Dizem, aliás, que uma das utilidades das tatuagens consiste em ajudar as famílias a reconhecer os corpos em caso de acidente ou desova.
Prefiro que meu presunto seja identificado pelo romantismo e mistério menor, mas pela eficiência maior, dos exames de ADN.
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A Copa acontece no Catar (ou no Qatar); seu símbolo é um keffyeh, a famosa toalha que os árabes enrolam na cabeça, e seu nome é La’eeb, mas eu, que sou velho e impaciente, o chamo de Gasparzinho.
Quem nasce no Catar (ou no Qatar) é catarense (qatarense) ou catariano (qatariano); a forma catari (qatari) é aceita, mas mais por inércia, ao que parece, e, para minha surpresa, é oxítona: catarí, qatarí.
Bem, boa sorte ao Catar ou Qatar, e boa sorte a quem lá for, e boa sorte ainda à seleção, mas, em matéria de catari, fico com o Core ‘ngrato:
Num te scurdà ca t’aggio date ‘o core, Catari,
nun te scurdà!
Se o amigo for procurar, tem com o Caruso, com o Pavarotti e com o Mario Lanza, mas eu sou breguinha e prefiro com o Fred Bongusto. Aliás, se o amigo quiser uma playlist de breguices italianas dos anos 60 e 70, peça que eu monto (mas depois não venha me bater).
E até semana que vem.