André Falavigna (cujo nome verdadeiro é Pantaleão J. Paranhos) é quase praticamente tudo, o que dá no mesmo que nada. Quase advogado, quase surdo, quase latinista, quase criador de gatos. Contribuiu com o Espaço Literário, do Comunique-se, ao tempo do saudoso Pedro Bondaczuk. Também está no livro oficial do centenário do Palmeiras, organizado por Mauro Beting. Tinha um blog dedicado à media watch da crônica esportiva, e por isso quase não tem mais amigos na crônica esportiva. Ele é boca suja, e se a mãe dele fosse viva e fosse muito boazinha – coisa que ela não era – sairia por aí espalhando que ele é o maior cronista brasileiro vivo. Espirituoso, erudito farsante, é uma lenda da modelagem de dados. Dizem que inventou, pessoalmente, o Power BI. O cara tem duas mulheres, duas famílias, duas casas, e por isso não tem dinheiro pra pagar o próprio aluguel. A newsletter dele, Ao Sailasca do Cambuci, que deveria sair sempre às quintas, nesta semana saiu na quarta e na sexta. Mesmo assim, é melhor do que a do Orlando.
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OCASO
Por André Falavigna
Isso foi no começo dos anos 80. À época, havia muitas ruas sem pavimentação no Guarujá. Ninguém falava em Maresias, e Santos é que era lugar de velhos cafonas. Guarujá passava por, ainda, programa muito bem aceito, e as famílias de – como direi? – certa “condição”, sobretudo as da Capital, procuravam ao menos conhecer a “Pérola do Atlântico”. Minha família, ela foi uma dessas. Meu pai alugou ali uma casa para veraneio, numa rua de terra batida a partir da qual se chegava de carro à praia em coisa de minutos. Tratava-se de grande ocasião e, por isso, muitas pessoas foram convidadas. Tios, avós, primos, empregados e agregados, uma pequena corte de bairro apresentou-se no Guarujá. Algumas pessoas chegaram conosco, outras depois. Algumas iam, ficavam um ou dois dias, voltavam a São Paulo a trabalho e depois reapareciam, causando sempre grande sensação – ao menos nas crianças, isso posso garantir.
Ao longo de toda a temporada circularam entre vinte e trinta pessoas pela casa, na realidade um sobrado que acomodou, com dignidade até, três gerações de uma família paulistana mais do que provável: meus quatro avós eram italianada clássica. Deles, apenas três puderam comparecer; meu pai era órfão de mãe desde os nove. Muitas das crianças e alguns dos adultos viram o mar pela primeira vez naquela viagem. Foram dias cheios. Chovia muito e pouco pudemos ir à praia, mas a casa tinha piscina e descobriu-se o siri. Comia-se siri predatoriamente. Paneladas de siri surgiam de todos os lados. Os siris chegavam vivos, morriam vivos – é, morriam vivos – e um deles foi parar vivo na piscina, donde saiu para ser morto pelos mais vivos do que ele. Minha tia Vitalina preparava-me potes imensos só com miolo de siri, sem pimenta, que menino não aprendeu ainda a comer a pimenta.
Jogou-se muito baralho, e meu austero avô materno chegou a fumar cigarro. Foi coisa muito solene. Houve pontos baixos também. Televisionou-se até derrota do Palmeiras para equipe menor. Contudo, no geral, a coisa ia bastante bem e a aventura ia atendendo às melhores expectativas de meu pai, que só se perturbava com esta ou aquela pequena confusão armada pelo pai dele, meu avô que não era austero. O velho vinha mal de saúde há tempos, e esperava-se que algumas semanas ao lado do mar pudessem fazer-lhe bem. Ao que tudo indica, ele tinha opinião diferente. Não por qualquer queixa quanto ao mar. Mas estava proibido de fumar e beber, e deveria passar a maior parte do tempo atrelado a um tubo que – supostamente – facilitar-lhe-ia a respiração. Era um aparelho enorme e aterrorizante, possuía registro e era encimado por uma espécie de medidor, e meu avô o desprezava de todo o coração. Usava-o muitíssimo menos do que o prescrito, bebia muitíssimo mais do que a disfarçada tolerância de seu filho permitia e, para completar, vivia de cigarro na boca.
Os cigarros eram caso à parte, de estudo. Surgiam sabe-se lá de onde, já que submetiam tanto o velho como sua bagagem às mais rígidas e periódicas revistas. A todo momento meu pai e minha tia – aquela dos potões de siri – passavam-lhe descomposturas pelo desleixo com o tubo, tomavam-lhe o maço de cigarros e fingiam ignorar o copo de uísque que, com estudado descaso, repousava na mesa sobre qual se via sempre qualquer jogo inacabado de paciência. Passados poucos minutos, ele chamava a mim ou a um de meus irmãos e, com ares marotos de cumplicidade, nos revelava onde obter-lhe outro maço. Eles escondiam-se nos mais óbvios e, portanto, mais surpreendentes lugares; às vezes, recebíamos indicação para pegá-los embaixo do colchão, junto ao estrado; em outras poderiam ser encontrados no meio de um monte de roupas sujas, e chegaram a aparecer mesmo entre as minhas roupas de criança.
Esse mau comportamento ia pontuando os dias e, sobretudo, as noites. Conferiam qualquer coisa previsível ao cotidiano irresponsável de nossas férias no Guarujá. A maioria das pessoas ali não levava a coisa muito a sério, exceção feita às mulheres que, por hábito ou traço do sexo, se não arrumarem alguma preocupação dessa ordem arriscam pôr tudo a perder. Eram sempre mulheres que iam alertar meu pai acerca das negligências de meu avô. “Seu pai ainda não usou o Oxigênio hoje”, “Seu pai está já no décimo cigarro”, “Seu pai está entornando uma atrás da outra”, “Seu pai está ensinando baralho às crianças” e o não menos rasteiro “A nós ele não obedece”. Meu pai então interrompia qualquer coisa interessante que ia fazendo para ir interromper qualquer coisa agradável com a qual meu avô estivesse se entretendo.
Uma pequena dança, nada importante, mas à qual se deve o fato de a viagem ter se tornado, sob muitos aspectos, inesquecível. Passou-se algo mais ou menos assim: a situação se esgotara, e não era mais possível sustentar, dia a dia, tal rotina de transgressões e pitos entre dois homens feitos e que se conheciam mais ou menos bem. Alguém tinha que pôr fim àquilo, pois havia muitas formas diferentes de se comer siri e muitas partidas de tranca e cacheta que ainda não haviam sido trazidas à luz, e tudo isso era posto em risco a cada pequeno atrito.
Meu avô, um notívago pertencente a certa linhagem ancestral de notívagos ancestrais, certo dia resolveu afundar algo mais, madrugada adentro, numa pequena sessão de paciência, álcool, tabaco e, solução verdadeiramente salomônica, Oxigênio. Não compreendendo o engenho quase genial da coisa, as mulheres alarmaram-se pra valer diante daquele quadro meio que saído de um sonho em sépia: na pequena mesa redonda, cercado por restos mortais de inúmeros siris, dedos engordurados em molho apimentado e surpreendentemente rápidos no manejo do baralho teimoso que se recusava a conceder saída honrosa à quinquagésima paciência da hora, sob escassa iluminação agia meu avô, cigarro aceso descansando no cinzeiro, copo de uísque em punho, máscara de Oxigênio a pleno vapor. Os instrumentos eram movidos com temível habilidade, cigarro e uísque muitas vezes na mesma mão, cartas girando sob o controle preciso da restante que, em certos momentos, trabalhava para levantar a máscara e permitir ora um gole, ora um trago, ora gole seguido de trago ou vice-versa – tanto faz. Cena infernal.
Foi daí que, no meio daquela noite sinuosa, despertaram meu pai com grande alarido a fim de que ele tomasse as rédeas da estupenda situação. Ainda confuso e incrédulo, o Gordo fez descer pelas escadas seu imenso e poderoso corpanzil e, antes mesmo de chegar aos últimos lances viu – ou qualquer coisa parecida – que era tudo verdade – ou qualquer coisa parecida. Berrou então, tom pastoso de recém-acordado que estranhou a todos, mas creio que mais ainda a ele mesmo “Puta que o pariu pai, que merda é essa? Fumando e bebendo e usando essa porra de tubo? Fumando do lado do tubo? Quer explodir a casa, puta merda?”. Após breve intervalo e não sem sincera consternação, o velho homem desceu o copo de uísque à mesa e subiu a mão alforriada à enorme testa, que era toda longas rugas canalizando suor, e exclamou rouco “Filho, é verdade, eu não sei onde é que é que estava com a cabeça!”.
Um silêncio que selava a paz, tenso como são todos os silêncios que selam toda paz, caiu sobre a casa. A fim de consumá-lo de uma vez por todas, meu avô fez girar o tronco lentamente, sem pressa, extraindo tudo o que podia daquela carcaça uma dia capaz de desferir violentas cabeçadas em bate-bolas na praia, de cortejar e perseguir mais mulheres do que a decência permitiria enumerar, de ingerir, processar e se livrar de quantidades açúdicas de boa – mas sobretudo de má – bebida, e que agora se prestava somente ao desejo frugal de um cigarro, um uísque e uma paciência interminável, e – já não sem certo deboche – desligou o Oxigênio.