Claudio Shikida é belorizontino de idade inconfessável, mas foge do dialeto e da dieta locais, tentando se fazer de carioca: o único carioca cruzeirense do universo. Não dá certo. Casou e descasou, e portanto sabe que a felicidade é boa enquanto dura e dura é a vida de quem embarca na dura vida a dois. Qual Brás Cubas, não foi pai, mas é tio, e até supertio, com poderes e capacidades avunculares excepcionais. Neto de japoneses e de portugueses, é fã da cultura pop japonesa e, nas horas vagas, se arrisca nos karaokês cantando música enka. Nas horas ainda mais vagas, banca o Watson do Dr. Palhinha, célebre detetive retroflexo. Fundou em Brasília – por onde ele também costuma ser visto nas noites de lua cheia – um grupo de música folclórica japonesa que já anda se apresentando por aí. Escreve a newsletter O que o Claudio Shikida anda lendo, meu Deus?!, na qual divaga literariamente sobre a vida, o universo e quase tudo o mais. E gosta muito de gatos.
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Vida que segue
Expressão cuja idade desconheço: ‘vida que segue’. Sempre tive a impressão de que fosse recente, coisa dos últimos 10 ou 15 anos. Posso estar enganado. Geralmente estou.
Andando pela rua, noto que suas calçadas estreitas e a insegurança que o relaxamento que a sociedade aceitou no combate ao crime (sim, aceitou, pois votou e não protestou com a devida intensidade) colaboram para que somente eu e mais uns poucos aproveitemos o sol da manhã.
Esta audiência reduzida para a maravilhosa combinação de obras humanas e divinas faz com que surja uma certa intimidade (qualquer sociólogo minimamente estudado sabe disto) o que nos dá, frequentemente, umas trocas de cumprimentos. ‘Bom dia’, diz a senhora com seu cachorrinho. ‘Bom dia’, digo eu. E, sim, vida que segue.
Nem sempre vamos encontrar as mesmas pessoas (principalmente se você for uma pessoa com uma rotina menos determinista (e não ‘determinística’, como me ensinou um grande mestre).
Sigo caminhando e pensando nestes assuntos vagos. Vez por outra vem-me uma preocupação pessoal ou profissional, logo empurrados para algum rincão da terra dos pensamentos por algum pensamento menor.
A caminhada terminará em algum momento porque ninguém é tão andarilho assim. É preciso parar e repor as energias. Sempre me incomoda que não tenha comigo aqueles tocadores de ‘mp3’ do início do século. Eram muito melhores e mais econômicos do que estas nuvens, cujo acesso demanda algum gasto.
De fato, ainda tenho o meu tocador de mp3. Pena que sua capacidade de armazenamento seja tão reduzida. Há também o incômodo de que não é seguro sair por aí com um fone de ouvido maior (destes que fazem menos mal à saúde), pois…eu já falei da insegurança relativa aos assaltos?
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Uma manhã
Sentei-me para escrever algo. Ao meu lado, na janela, Sofia e Gigi, as duas gatas ouviam o gorjear dos pássaros, sempre ocultos nas árvores do bairro. ‘As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá’, diria Gonçalves Dias, hoje, lembrado apenas como o nome de uma rua ou como uma leitura obrigatória para a prova de língua portuguesa.
Não saberia dizer se as gatas concordam com o consagrado poeta. Parece-me que todos os gorjeios são como um gatilho para o instinto primal dos felinos, caçadores por natureza. Talvez não sejam só os homens que são todos iguais (e as mulheres não prestam). Os gatos, neste aspecto, são todos muito parecidos.
Verdade, devo reconhecer, é que os simpáticos felinos também têm suas personalidades, diferentes (quem já conviveu com um sabe bem como é), tais como homens (que não prestam) e mulheres (que são todas iguais). Enquanto meus pensamentos matinais se perdem em gatos, gatas, homens e mulheres, observo que o céu continua nublado. Certamente vem chuva hoje.
Li um capítulo pequeno de um livro que já teria encerrado não fossem os afazeres do cotidiano. Nas últimas semanas, minha atenção foi desviada para outros assuntos, mais urgentes e importantes para a minha (sobre)vivência. Afinal, mesmo com ChatGPT, ainda nós, seres mais ou menos humanizados, mas certamente humanos, ainda precisamos de alimentação. Não se vive só de moedinhas de um mundo virtual.
O café, ao meu lado, já está no fim. Outra xícara é premente.
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Doutor Palhinha encontra o Juiz Dredd
Depois do último número da newsletter, senti vontade de escrever um pequeno texto sobre como seria o encontro do doutor Palhinha com o lendário (para mim) Juiz Dredd.
O cenário: numa esquina de Mega-City One, o temível Juiz Dredd descansa após enfrentar uma horda de mutantes. Toma seu café no copo descartável olhando para o chão quando vislumbra o que parece ser um par de chinelos sujos ocupados por familiares (para nós) pés descalços.
Ao levantar os olhos percebe que está em frente a uma figura diferente. Trajando camisa xadrez com suspensórios e um sobretudo desengonçado que parece ser dois números maior do que suas medidas, lá está o… (deixemos que ele se revele).
— Oi moço. Como faço pra ir prá Taubaté?
— O senhor não é de Mega-City One. Identificação, por favor.
— Hein? Ah, o senhor quer dizer Érre-gê. Tá aqui, ó.
Até mesmo o Juiz Dredd, acostumado com o que há de mais nojento no mundo dos quadrinhos de ficção britânicos (God Save the Queen!) se espanta com estado de decomposição daquela carteira de identidade.
— Honório Palha de God...?
— De Godoy, chefia.
— Como veio parar aqui?
— Num sei. Óia, moço, eu tava num caso, levando um negão, tal de Tom Sowell para a cadeia, na página 112 dum livro e, sei lá como, apareci aqui.
— Bem, senhor Honório…
— Doutor Palhinha.
— Como?
— Doutor Palhinha, moço. Me chama de doutor Palhinha.
— Oh, sim. Bem, doutor Palhinha, o que o senhor quer mesmo?
— Saber como vórto prá Taubaté, moço.
O juiz Dredd pensava sobre a situação toda quando foi interrompido.
— O sinhô é da lei, é?
— Sim, sou juiz.
— Minha intuição num falha. Mas porque usa esta fantasia?
— Fantasia? Este é meu uniforme! Olha aqui o distintivo!
— Jura, moço? Uai, bunito.
— O senhor falou ‘Taubaté’. Onde fica isso? É fora dos muros?
— Ô, seu autoridade, tem muro naum. É lá perto de São Paulo.
Dredd e Palhinha, que encontro notável. Um juiz de 2099 e um inspetor em uma espécie de interseção dimensional. Vejamos em que isso resultará…
— O senhor juiz poderia dizer o que fazia quando me encontrou?
— Oh, sim, doutor Padilha. Tentava resolver um crime.
— Quem sabe naum ajudo? Sou investigador?
— Hum, muito bem. Já que está aqui, vou lhe contar o que sei.
Dredd começava a se incomodar com doutor Padilha e pensava em lhe dar um tiro. Contudo, o intrépido investigador não havia cometido nenhum crime. Assim, Dredd decidiu lhe falar de um crime iniciado em número anterior da revista 2000AD.
— Olha, doutor Padilha, outro dia, no Condo Julie Newmar, um homem foi achado morto. Todas as entranhas para fora. O padrão de crueldade lembra muito o meu clone, Rico. Era o que eu pensava até a página 23. Mas, então, entre as páginas 24 e 30, houve uma reviravolta…
— Chefia, divagá aí. Quequié ‘Condo’?
— São aquelas construções ali, olha.
— Nussa Senhora das Solteironas! Casão mermo…
Foi então que o nosso inspetor descobriu algo muito maior.
— Ó, seu juiz, descobri o que tá acontecendo.
— Acha que foi o Rico? O Juiz Morte?
— Naum, naum. Descobri ôtra coisa. Já sei porque estou aqui. Veja, eu estava na página 112 dum livro e o seu juiz estava resolvendo um crime entre as páginas 24 e 30 dum gibi, como é mermo o nome?
— 2000AD.
— Isso, 2000ádê. Pois entaum, seu juiz, gibi e livro é coisa de gente metida a ler. Gente que prefere se trancar num quarto com papeleira e lápis. Gente que num joga bola no campinho quando criança e que troca bocha com os idosos para folhear jornal na velhice.
— Onde quer chegar, inspetor?
— Carma, seu juiz. Veja, esta gente aí é toda cheia de mania. Tudo tomador de café que não sai muito de casa porque ‘tem-que-ler-um-livro’.
— E…?
— E isso significa que um cdf, um Caxias que me tirou do livro e me colocou aqui! Veja! É o autor!
Foi então que o autor percebeu que Dredd e o doutor Palhinha o encaravam. Perdeu os sentidos ao ser atingido por um raio atordoador. Nunca mas soube dele, mas ainda tenho a estranha sensação de que o conheço…
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Pantagruel
O Como Panurgo pede conselho a Pantagruel para saber se deve se casar, um pequeno capítulo de 3 (é, três) páginas do Terceiro, Quarto e Quinto Livros de Pantagruel, de Rabelais (editora 34, 2022) é um baita de um 'bem me quer/mal me quer’ sobre casamento.
Já eu, bondoso que sou (e Rabelais que não sou), tenho sempre dito: se beber, não case. Se não beber, também não case. (direitos autorais registrados e quem duvidar é fascista).
Muito obrigado, Orlando!!