Edição extra: apresentando SÉRGIO DE SOUZA
Da newsletter "Tempestades mentais sobre quase tudo".
Sergio de Souza escreve a newsletter Tempestades Mentais Sobre Quase Tudo e por muitos anos editou e escreveu no blog O Camponês. É tradutor (traduziu, entre outros, Nick Cave, Scott Hahn, Joseph Pearce e o padre James Schall) e diretor do Instituto Cultural Mão de Luva, em sua cidade, Cantagalo, no interior do Rio de Janeiro.
Nasceu, viveu e mora na mesma cidade desde 6 de maio de 1975. É um homem do interior que teve seu primeiro espanto artístico ao assistir o filme “E.T., o extraterrestre, de Steven Spielberg, levado por seus pais, em 1982. Cresceu lendo HQs e os críticos da Revista Bizz. Teve acesso muito cedo à biblioteca de sua mãe, onde figuravam autores como Dostoievski, Clarice, Santo Agostinho e Hermann Hesse.
Do pai, herdou o gosto pela política, pelo jornalismo e pelo Vasco. Tentou três cursos universitários, falhando gloriosamente em terminá-los todos — Direito, História e Pedagogia. É fã de rock e vive imerso na cultura pop, embora jamais abra mão dos clássicos. Começou a publicar textos com regularidade na internet em 2009, depois do contato com Olavo de Carvalho, do qual foi aluno, no Seminário de Filosofia.
Escreve sobre religião, literatura, música e cultura pop.
É casado e pai de três filhos.
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Vivo lutando o tempo todo com os autores que amo. Luto com Paulo Mendes Campos porque acho que o amor não acaba, com Caio Fernando Abreu porque escreveu uma das mais belas histórias de amor entre dois homens, com Thomas Merton porque desobedeceu a regra e transou com a enfermeira, com Natalia Ginzburg porque sugere liberdade demais ao aconselhar sobre a criação dos filhos, com Patti Smith porque gosta de Greta Thunberg , e com Joan Didion porque… Bem, com Joan Didion ainda não arrumei motivos para lutar, mas estou procurando.
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Como pode uma cidadezinha tão pequena, um pontinho na vastidão do universo, ter na alma de um homem tal amplidão metafísica? Cantagalo é uma cidade vestida de noiva, que entra no quarto dos meninos, que invade com seus luares e auroras os vazios de seus quartos e os seduz com suas árvores e montanhas, pastos e matas, ruas e vielas, nascentes e córregos que entram pelas janelas como paisagens, cheiros e atmosferas. Cada canto dessa cidade guarda um pedaço de história, da minha pequena história. Sou provinciano e Cantagalo é a província de minha alma.
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Um homem que foi para o inferno era atormentado continuadamente pela visão de sua esposa. A princípio, sentia saudade do toque, do cheiro, da presença. Aos poucos, foi percebendo que jamais teria nada daquilo de novo. Incessantemente, no entanto, sua esposa lhe aparecia. De tanto ter que olhá-la, a frustração de ver sem poder sentir, que ainda guardava uma ponta de sentimento, foi transformando-se em desgosto, tédio, nojo, até transbordar em puro ódio. Paulatinamente, como se no inferno houvesse tempo, ele foi odiando aquela mulher, aquela imagem, aquele corpo, aquelas memórias. Até perceber que o que ele cultivava na terra era um simulacro soberbo do amor, cheio de vícios e hedonismo, que disfarçava um egoísmo, que disfarçava um desprezo. que disfarçava o desgosto, o tédio, o nojo e o ódio. No fim das contas, era um amor que disfarçava um fundo de ódio. A estadia no inferno revelou uma verdade sobre a sua vida: ele já vivia o inferno sobre a terra.
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Acho que meus filhos não serão vascaínos. O Vasco praticamente sumiu do nosso panorama cultural. Até pouco tempo, as quartas-feiras, os sábados ou domingos eram sagrados aqui em casa. Ninguém nem dirigia a palavra a mim quando o Vasco estava jogando. Eu tenho um veneno correndo pelo meu sangue. Eu não gosto de futebol, eu gosto do Vasco. (A frase é de Roberto Porto, sobre o Botafogo). Virei um torcedor in pectore, mas eu sou fascinado pelo Vasco. É coisa de infância, consolidada na adolescência. É que nem Beatles. Comecei com aquele álbum branco ali, quando criança, no início da adolescência um sargeantpepperzinho aqui e — pronto! — fui fisgado. É coisa de sangue. Uns gostam de café e cigarros, outros de calmantes ou maconha: eu gosto de Beatles e Vasco. São minhas obsessões.
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Todos os meus passeios de bicicleta passam pelos mesmos lugares. Cumpro um roteiro, quase uma liturgia, lenta, silenciosa e repetitiva. Nós, que vivemos no interior, aprendemos a viver assim. São mais de quarenta anos andando e vivendo nas mesmas ruas, frequentando os mesmos lugares, olhando os mesmos rostos. A vida no interior é parecida com a de um mosteiro: ritmo, silêncio e repetição. A gente vive mais por aprofundamento do que por diversidade.
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Todos os meus passeios de bicicleta passam pelos mesmos lugares. Cumpro um roteiro, quase uma liturgia, lenta, silenciosa e repetitiva. Nós, que vivemos no interior, aprendemos a viver assim. São mais de quarenta anos andando e vivendo nas mesmas ruas, frequentando os mesmos lugares, olhando os mesmos rostos. A vida no interior é parecida com a de um mosteiro: ritmo, silêncio e repetição. A gente vive mais por aprofundamento do que por diversidade.
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O Natal é triste porque os mistérios gozosos são cheios de famílias pobres sem lugar para pernoitar, reis assassinos de crianças, meninos destinados à contradição e espadas que devastam corações.
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Dois meninos passam por mim, empolgados em suas bicicletas motorizadas, voando na ladeira (um deles empinando sua máquina). Essa sensação de liberdade joga um entusiasmo nas veias que deve ser semelhante a algumas dessas drogas que viciam num segundo. Quem experimenta, nunca esquece e nunca quer parar. Fica gravada na memória feito uma nódoa do futuro. Eu nunca fui protagonista destas experiências. Sempre andei de carona, mas sei que o vento batendo no rosto, a velocidade e o sentimento de estar no controle da situação é extasiante. Eu vi no rosto dos meninos. O carona, o acompanhante, muito embora participe desse jogo, não é o protagonista. É um outro sentimento, muito mais sereno e contemplativo. Você acaba não olhando para a frente, mas para os lados. Vê as montanhas, as árvores, as casinhas no alto dos morros, o campeiro tirando leite, e as vacas pastando. E acaba se perguntando como seria morar ali, naquelas belas casas que ficam na subida na serra, ou que tipo de bicho poderia morar naquela matinha que ladeia o asfalto. A vocação do motorista é a de ser o herói; a do carona, o narrador, o poeta, o escritor. O motorista vive a história, o carona narra.
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Como quebrar feitiços? Falando! Quer secar a magia das coisas? Escreva sobre elas, narre-as, desvende-as. Fuce, mexa, escarafunche, investigue. Fale e escreva. Retire a mística das coisas. A literatura também serve para desencantar.
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Era fã de Morrissey. Aos 65 desandou a só se comunicar com as pessoas utilizando frases e títulos das canções do maior inglês vivo.
— Eu odiaria ser como certas pessoas que conheço…
— O quê, seu Fernando?
— Eu sei que um dia vai acontecer!
— Seu Fernando, quê que está acontecendo? Não estou entendendo nada…
— Satã rejeitou minha alma. Você nunca saberá o quanto me custou todo o divertimento que tive na vida. Na verdade, minha vida é uma sucessão de pessoas dizendo adeus.
— Satã, seu Fernando? O diabo?
- Há um lugar no inferno reservado para mim e para meus amigos, e quando formos embora — todos nós iremos — então, veja você: nunca estarei sozinho.
— Deus que me livre, seu Fernando, desandou a falar de diabo e morte assim, de repente. O que foi?
— Eu perdoei Jesus.
— O quê, seu Fernando? O senhor perdoou Jesus? Não foi Nosso Senhor que lhe perdoou?
— Jesus me machucou quando me abandonou, mas eu o perdoei. Eu perdoei Jesus por todo esse amor que ele colocou em mim quando não há ninguém a quem eu possa recorrer…
— Seu Fernando do céu! O senhor endoidou de vez… Não se brinca com uma coisa dessas. Para de me olhar com essa cara de tarado. Que troço é esse de “não há ninguém a quem recorrer…” ?
— Você é a única para mim, gordinha!
— Deus me livre, sou casada, sai pra lá!
— Quanto mais você me ignora, mais perto eu chego….
— Seu Fernando!!! O senhor era tão comedido…
Sérgio de Souza é um grande! Esses recortes que vc fez, Orlando, são maravilhosos. São para a meditação. Muito obrigado.
Fico profundamente comovido com vocês dois falando assim deste pobre camponês. Obrigado, amigos.