Com satisfação comunico que estou há dez dias sem levar um rola.
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Morei em casas térreas pela maior parte da minha vida: de 1969 a 1971, depois de 1981 a 1997, finalmente de maio de 2002 a maio de 2024. Agora estou num sexto andar, em bairro ainda cheio de casas e sobrados, mas que vai se verticalizando depressa, com muitos prédios já prontos e muitos outros subindo.
Não sofro de insônia. O que acontece comigo é o que acontece com quem vai envelhecendo: temos o sono picotado. Você se deita, não digo que com as galinhas, mas antes das corujas; acorda no meio da madrugada, premido pela bexiga, e não consegue pegar no sono de novo com facilidade. Evita zanzar pela casa para não acordar quem dorme. Evita o café, evita até a água, evita comer, evita ligar a televisão. Resta ouvir música baixinho, talvez ler alguma coisa, escrever, navegar na internet.
Eu peguei o hábito ou a mania (às vezes é difícil distinguir uma coisa da outra) de ficar na lavanderia, olhando pelos janelões a avenida lá embaixo e os prédios grandes mais adiante. Às vezes fico sozinho, às vezes na companhia de um dos gatos que usa a caixa de areia ou se deita no caixilho, bocejando e se lambendo. E fico lá, em pé, tomando vento.
Nos prédios, vejo muitas e muitas luzes acesas às três e meia da manhã, não só em cômodos pequenos, mas em salas e varandas também. Imagino um monte de lo-fi girls também com seus gatos, estudando, lendo, ouvindo música ou sei lá o quê. Haverá algumas. Mas haverá ainda mais gente insone, haverá outros velhos esperando, como eu, que Morfeu volte da esquina, haverá doentes, preocupados, atarefados, até os que não dormem por alegria ou amor.
Penso essas coisas sem realmente imaginar essas pessoas, tentar formar figuras e histórias na minha mente: vejo luzes acesas (eu mantenho as minhas apagadas; vem tanta luz de fora, da avenida, que não é preciso acender nada) e lamento não ser adepto do cachimbo ou do cigarro: talvez avistar minha brasa piscando de longe desse a alguém numa daquelas janelas ou varandas a vontade de me imaginar. Quem é aquele que fuma, discreto, no meio da madrugada?
Mas eu não fumo, ninguém me percebe por ali, e às vezes, uma hora depois, o sono volta do seu passeio e eu consigo voltar a dormir.
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Ódio eterno ao futebol moderno, dizem por aí.
Eu, que odeio pouca coisa e quase ninguém, fui sábado à rua Javari ver o Juventus jogar. O nome oficial do estádio, cuja lotação permitida hoje em dia é de 3.800 pessoas e nada tem de moderno, é pomposo: Conde Rodolfo Crespi. Esse Conde já foi um dos próceres da velha São Paulo de que sou restolho: seu era o cotonifício cujo prédio, tombado, fica na Rua Taquari, entre as ruas dos Trilhos e Javari, abrigando hoje uma loja do mercado atacadista Assaí. Minha tia Guiomar foi funcionária do cotonifício lá pelos anos 30 ou 40; trabalhava na lançadeira de um tear e tinha orgulho de não ter perdido dedo nenhum nessa função perigosa (dizia ela que era comum as lançadeiras perderem as pontas dos dedos). Suponho que fosse bem paga, porque gostava de se vestir bem e sair com as amigas para o que quer que fosse lícito se fazer entre mulheres naqueles tempos (e talvez também para o que não fosse escandalosamente ilícito). O clube Juventus aliás foi fundado com o nome do Conde e de sua empresa, Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube, isto em 1924, tendo mudado de nome para Clube Atlético (ou Club Athletico, na grafia da época) Juventus em 1930. O Juventus, portanto, tornou-se centenário neste ano de Nosso Senhor de 2024. Houve celebrações, às quais não atendi (não sou sócio).
O jogo era com a Portuguesa, a velha Associação Portuguesa de Desportos, jogo que hoje é tratado como um clássico, o chamado Clássico dos Imigrantes, dado que tanto a Moóca quanto o Juventus são de tradição italiana pesada. Já foi jogo de Pacaembu, nos tempos em que a Portuguesa era grande (o Juventus nunca foi) e tinha tanto torcida numerosa quanto, nos seus quadros, gente como Julinho Botelho, Pinga, Djalma Santos, Dicá, Zé Maria, Enéas. A cancha praticamente lotou: 3.760 ingressos foram vendidos. Entre eles o meu e o do meu irmão: 40 reais cada, numa arquibancada de cimento pintada nas cores do clube, branco e grená, que, nos tempos do futebol arcaico, seria chamada de “geral”.
Para fugir do sol, que batia nervoso na arquibancada lateral da Javari, fomos para trás de um dos gols, cuja arquibancada estava à sombra. Tratava-se precisamente das traves em que o Pelé marcou seu gol mais bonito (naquele dia havia cerca de trezentas mil pessoas no estádio, tantos são os que disseram ter visto a masterpiece), chapelando meio mundo na pequena área e fazendo o goleiro Mão de Onça cair esparramado no chão.
O sol não é o único problema da arquibancada do lado da Javari: quem se senta nela não tem visão de boa parte das laterais e do próprio gramado na altura do meio do campo, porque os bancos de reservas a tampam. Quem se senta do outro lado, na arquibancada do lado da rua dos Trilhos, o da torcida visitante, esse sim tem visão do campo todo. Elegância do clube para com os de fora.
Atrás da nossa arquibancada, e pois atrás de um dos gols, ficam o terreno e o edifício em ruínas do Ninho Jardim Condessa Marina Crespi, também conhecido como Creche Marina Crespi, que funcionou dos anos 30 até 2010 e hoje está tombado e desabando. O alambrado que encima as arquibancadas se enreda em vários lugares às ramas das árvores do quintal da velha creche; jovens torcedores organizados juventinos escalavam o alambrado para prender faixas brancas e grenás (as cores do clube, como já dito, que são aliás as mesmas do Torino, o grande rival local da Juventus italiana), ante a nossa admiração invejosa: quando foi a última vez que escalamos uma cerca? E a charanga, a percussão, com seus cantos e palavrões, ficou bem perto de nós. Mesmo assim, conseguíamos conversar.
O afluxo da massa nos impediu de chegar perto da barraquinha dos cannoli, de modo que ficamos sem eles, e nem pudemos conferir se continuam baratos. Perder os cannoli é quase pior do que perder o jogo. Mas Deus dá o frio conforme o cobertor, já dizia um juventino famoso.
O prélio foi das 15:00 às 17:00 – o estádio é famoso por não ter refletores e não poder receber jogos noturnos. Estava calor, mas a luz do outono, aquele dourado que só se vê ao sul da Mantiqueira, iluminava a cancha e fazia belo o cenário de um jogo feio. Depois, bateu vento. Foi uma tarde agradável. Na saída, passando ao lado do campo, sentíamos o cheiro da grama.
Foi 1x1. Os rubroverdes dominaram, mas não converteram em tentos sua superioridade. O tento dos grenás, apesar de bonito, foi achado. Vão ter vida dura na Copa Paulista.
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Cancha é termo de origem quíchua que nos chegou, talvez, pelo lunfardo. O jornal argentino La Nación tem, na parte esportiva do seu site, o nome de Canchallena, cancha cheia, 3.760 hinchas na Javari.
O uso de cancha para falar em experiência, perícia, conhecimento, habilidade, esse é certo que é lunfardo.
Meu pai costumava chamar as chuteiras, e também nossos pares de tênis quando em mau estado, de chancas. Tendo sido moço nos anos 40, o calçado que ele chamava de chanca era uma botinha ou pequeno borzeguim de couro, com atacas ou cadarços também de couro, apenas quatro travas de madeira ou borracha vulcanizada, e biqueira feita de couro mais duro, pesando cada uma cerca de um quilo: uma espécie de arma branca. Uma bicuda bem dada podia quebrar fácil uma perna.
Dizia meu pai que os jogadores argentinos entravam em campo armados não somente com essas chuteiras ou chancas, mas também com cuchillos, punhais, escondidos nos meiões. Contava também de um meia argentino chamado Luís Villa, jogador do Palestra, que teria entrado em campo com um apito pendurado na correntinha da Santa e fez com ele um tremendo fuzuê num derby.
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Apesar da parecença dos termos, cuchillos e cutelos são coisas muito diferentes. O cuchillo é uma faca ou punhal; o cutelo é uma espécie de machado pequeno. Mas a arte da cutelaria é a da produção de facas e punhais, não só a de cutelos.
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A rua dos Trilhos leva esse nome porque, bah, já teve trilhos: ali corria a linha férrea que saía da estação do Brás e levava ao antigo Hipódromo. Os trilhos corriam paralelos aos da linha de Jundiaí e derivavam pelo lado da antiga fábrica da Alpargatas (que hoje sedia uma universidade), mais ou menos onde hoje está o final do viaduto Alcântara Machado, e entravam pela Rua dos Trilhos, que até hoje serve como entrada oficial da Moóca. O Hipódromo, que era o antigo Jockey Club, ficava na área conhecida como o Prado da Moóca, que se estendia ao longo da Rua Bresser mais ou menos de onde hoje está o viaduto Bresser, lindeiro com a Rua Ipanema, até a rua Taquari, confinado a leste pela Rua Jaibarás. Na pontinha nordeste do Prado ficava a estação da Segunda Parada. A oeste, na esquina da Visconde de Parnaíba, ficava a Primeira Parada, perto da Hospedaria dos Imigrantes que abrigou, ali por volta de 1895, meus ancestrais Tosetto e Bobato a caminho de Ribeirão Preto.
Até hoje há no Brás uma rua do Hipódromo, que começa na Rangel Pestana e vem morrer, precisamente, na rua dos Trilhos.
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Prélio vem do latim, proelium, e significa batalha, combate, luta. O termo não desapareceu, embora tenha rareado, e está na letra do hino do Palmeiras. Que diz que o time “à dureza do prélio não tarda”.
Essa crase, aliás, está certinha; erram os que a engolem.
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Tento vem do rugby, onde leva o nome de try e vale não um, mas cinco pontos. Houve tempo em que os dois, o football association e o rugby, eram um e o mesmo esporte.
Do rugby também o futebol conserva o impedimento ou off-side. No rugby ele é mais simples e não exige VAR: basta não passar a bola (com as mãos) para um companheiro à sua frente.
No futebol, ele é um dos afluentes do grande rio chamado “meu time é o mais roubado do mundo”.
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Futebol, trem e ruas velhas.
Perdão.
Console-se o amigo, se isso for possível, assistindo à minha participação no Repórter Belga que foi ao ar na sexta-feira passada:
Ou lendo a minha crônica nova na Crusoé.
E até mais ler.
Que prosa boa! Que prosa boa!
Ótimo texto, como de costume. Apenas permita-me uma pequena correção: no rugby, o off-side consiste, na verdade, em o jogador do time que defende ficar à frente da linha da bola, que é de onde o time atacante reinicia a jogada. Passar a bola pra frente é penalidade diferente.