163. Róla; livro; Gerardo; coita; verbete; cornos; hinos; sono; pobreza; nhaca & zica; promoção; João, cachaça e vaia; orelhas; vereditos
Ter um feriado ajuda a esticar os assuntos.
O departamento competente informa: estamos há dois dias sem levar um róla. O último foi segunda-feira (chuva, calçada escorregadia, ladeira: caí de bunda. Danos sérios somente ao meu senso, muito inflado, admito, de dignidade).
* * *
O amigo Alex Sugamosto vem de lançar um livro em que analisa ou medita a respeito da mitopoética religiosa no livro de poemas de Gerardo Mello Mourão chamado “Os peãs”. Nunca li o Gerardo, uma das minhas lacunas infinitas, e quis ler, e quis ler precisamente esse livro aí; ora, a última edição, da Record, é de 1986, e os exemplares sobreviventes custam quinhentos mangos nos bons sites do ramo de alfarrabismo. Para o ter vou, pois, depender da sorte, essa que costuma faiá, ou da boa vontade da editora em reeditá-lo (essa costuma faiá mais ainda).
Em tempo: o livro do Alex se chama “Apolo cantador de feira: a mitopoética religiosa na obra ‘Os peãs’”, e pode ser comprado aqui.
* * *
A respeito da grafia “Gerardo”: espiando uma conversa de amigos, vi que alguém a defendia como legítima, sendo “Geraldo” um erro. Dizia o amigo que grafar Geraldo em vez de Gerardo é como grafar Leonaldo em vez de Leonardo.
Como se diz em Heliópolis: si non è vero...
* * *
Dom Dinis, o rei trovador, viveu entre os séculos XIII e XIV e tinha cantigas em que se queixava à amada da “grã coita” que ela o fazia penar. A palavra “coita” usada entre amantes sugere besteira, mas calma: há no dicionário do sr. Uáis não apenas um, mas logo dois verbetes com as acepções de “coita”, nenhuma delas tendo a ver com as sujidades das nossas mentes. Interessa-nos o primeiro (o segundo trata de uma espécie de facão). A ele:
coita s. f. (sXIII) arc. 1. dor, aflição, desgosto, esp. por motivo de amor 2. pressão das circunstâncias; compulsão física ou moral; necessidade. ETIM regr. de “coitar”. HOM coita (fl. coitar).
Pois é isto: a amada de D. Dinis o fazia passar por aflições e desgostos. Talvez ela o esnobasse; talvez lhe recusasse favores, a ele e não a outro ou a outros; talvez a outro amasse. Por tal razão, por tal coita, era o rei um grande coitado.
Era aliás tamanha a coita, e tão coitado pois o soberano, que a queixa se tornava por vezes muito amarga, até mórbida:
Em gram coita, senhor,
que peior que mort’é,
ou
e melhor mi será
de moirer por vós já;
ou ainda
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
polo meu gram mal vi.
Esta coita é pior do que a morte, aliás melhor morrer logo duma vez, pois ter posto os olhos em ti, senhora (“senhor” é “senhora”: o mundo tinha menos cores, e em Portugal, todo o mundo sabe, se engolem vogais), foi a pior coisa que já me aconteceu. Eis aí, em versos e em música, os padecimentos de D. Dinis.
Eram duros o jogo e o jugo das senhoras do século XIII/XIV.
* * *
Vale a pena esclarecer algumas tecnicalidades do verbete.
S. f. é fácil: substantivo feminino.
(sXIII) é a data da primeira aparição escrita da palavra (verba volant, scripta manent, não esqueça o amigo): século XIII, possivelmente nas cantigas do rei ou de outro trovador.
arc.: arcaísmo, palavra de vovô. Ou de bisavô do bisavô do bisavô.
ETIM regr.: etimologia de termo de derivação regressiva. No caso, o verbo coitar deu origem ao substantivo coita.
HOM coita (fl. coitar): homônimo de coita (flexão do verbo “coitar”: ele coita).
O mesmo dicionário define o verbo “coitar” como “causar dor ou sofrimento; magoar, afligir, desgraçar”, e dá seu étimo no latim coctare, corruptela vulgar de cogere, que quer dizer “constranger, violentar”. A língua castelhana tem, aliás, um verbo coger, que tem, entre outras acepções, a informal de foder – fodia-se a felicidade do coitado.
Olha o que faziam aos moços as moças do século XIII/XIV. Empoderadas ou não?
* * *
A propósito: o amigo pode, se quiser, fazer a mitopoética da música de corno nas cantigas de amigo. Nada o impede. Bom, nada talvez seja demais: eu não conheço a vida do amigo. Mas é certo que eu não o impeço, e deixo aqui a sugestão.
* * *
Aconteceu de eu estar acordado, de bobeira e indefeso diante da TV quando do jogo entre Portugal e França pela (ou pelo, como eles dizem além-mar) Euro. Assim acordado e indefeso vi os times entrando em campo e alinhando-se para seus hinos, e acabei prestando atenção à letra do hino nacional de Portugal, entoado com graus variados de entusiasmo e ferocidade pelos talentosos jogadores lusos. Eu conhecia apenas o primeiro verso, aquele que fala, com toda a justiça aliás, nos “heróis do mar”; não conhecia porém a última estrofe:
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar!
Às armas, às armas!
Pela pátria lutar!
Contra os canhões marchar, marchar!
Pensei que essas crases dos “às armas!”, mais que os canhões, derrubariam a quase totalidade dos brasileiros se esse hino fosse o nosso, mas depois lembrei que nenhum estudante brasileiro sabe mais qual o sujeito do primeiro verso do nosso hino, e vi que a sintaxe do de Portugal é afinal bem mais acessível.
Alguém, já não lembro quem nem onde, disse que hino nacional é tudo assim: sangue, guerra, vamos lá morrer pela terra, etc. Para ficar em exemplos daqui da nossa vizinhança, os argentinos juram morrer com glória; os uruguaios já abrem dizendo que ou é a pátria, ou é a tumba; os paraguaios pedem República ou morte; os chilenos louvam sua terra dizendo que ela será o túmulo dos livres; os bolivianos preferem morrer antes de viver como escravos; e nós mesmos, povo heróico, gritamos à pátria amada que quem a adora não teme a própria morte. O hino de Portugal chamar às armas e mandar marchar contra os canhões é simplesmente manter o espírito da coisa.
Pena que, no jogo, o soir de gloire foi gaulês, ainda que nos pênaltis. Mas esse também é o espírito da coisa.
* * *
Já quando da eliminação do Brasil, também nos pênaltis, não dei bobeira: estava dormindo havia muito.
* * *
Por que Deus nunca fará de mim bilionário:
1) eu mandaria alguma startup desenvolver um aplicativo que atendesse todas as ligações de telemarketing com a voz do Suplicy recitando a letra da Ragatanga;
2) financiaria pesquisas para a criação de psíquicos capazes de usar O PODER DA MENTE para derreter as baterias dos carros que toquem fãnque em volume alto.
* * *
Enquanto aumenta a ouvidos e olhos vistos a depauperação do português falado e escrito no Brasil, aumentam também, por necessidade, seu poder de síntese e a polissemia: a língua, privada de termos, começa a resumir e a concentrar sentidos nas palavras que lhe vão sobrando. Sentidos ora concretos, ora abstratos. O mesmo processo afeta o bestiário nacional. Exempli gratia: o português do Brasil resumiu e suavizou todas as Górgonas, todas as Erínias e todas as Parcas em duas criaturas – a Nhaca e a Zica.
A Nhaca é o monstro dos excessos de inatividade (não ria, isso existe: é possível se exceder no ócio, sim, senhor). Surge infalivelmente quando você dorme demais, come demais, fica jogado demais, sente tédio demais. Quando isso acontece, nove vezes em dez a Nhaca gruda em você, atraída ou gerada pelo excesso de vazio. Felizmente ela é um monstro fraco, fácil de matar com expedientes ou mandingas simples, tais como se alongar, bocejar, chacoalhar-se como um cachorro ou tomar um banho. Tudo muito de acordo com o caráter nacional: o brasileiro só topa ser Perseu se não der muito trabalho.
Já a Zica é o monstro dos azares, das insuficiências, dos travamentos. Quando alguma coisa não desenrosca, são artes da Zica: não sai o gol, não vem aquele dinheiro, a promoção enrosca, a data de alguma coisa nunca chega, ou alguma coisa nunca vem. É a Zica que grudou. Ela é muito mais forte e poderosa do que a Nhaca, mas também è mobile, muta d’accento e di pensiero, e geralmente vai embora como veio; às vezes, porém, se afeiçoa ao zicado, e o tirá-la se faz necessário, ainda que seja serviço especializado: é quando entram as benzedeiras e outros métodos e mandingas, os quais vão passar aqui sans dire, já que, postos por escrito, dão cadeia.
Se o resumo dos monstros é esse, o das ninfas e melíades, maior ainda, concentra-se todo na TV, no Carnaval e nos bailes funk. Mas isso é assunto para outro dia.
* * *
Nhaca, Zica, Saci, Boitatá, Curupira, Cuca (não conto o Lobisomem porque é importado): nosso bestiário é acanhado, mas besta é besta. Há que tê-las.
* * *
Nos meus tempos velhos de office-boy, almocei muitas vezes sanduíches de frios sortidos com suco de caju (daqueles de polpa diluída em água gelada), numa biboca ali no térreo das Grandes Galerias, lado da 24 de Maio. Obviamente, nunca me preocupei nem em averiguar quais frios iam dentro do pão (mas sei que havia salame e algo que se parecia com morcilha) nem a procedência da água em que diluíam a polpa do caju; o que me interessava é que esse arranjo (que leva o nome de “combo” na língua tupi) era chamado de “promoção”, ainda que não ficasse muito claro o que é que se estava promovendo. Em todo caso, se comprados juntos, sanduíche e suco custavam alguns bilhões de guaranás-mirins (era essa a moeda corrente, creio eu) a menos do que comprados avulsos. E esses bilhões assim poupados me faziam falta.
Durante todo o tempo em que comi naquela biboca, a promoção se manteve. Eu já chegava pedindo “manda uma promoção!”, e comia em pé, no balcão, tudo resolvido em dez, quinze minutos, incluindo o discreto arrotinho final. Os restantes quarenta e cinco minutos eram gastos nas lojas, sapeando os discos de rock. Na época o CD já existia, mas era caríssimo, e o vinil ainda era forte e barato. Eu circulava pelas vitrinas vendo capas enormes e bonitas de discos de heavy metal enquanto exalava eflúvios de carnes misteriosas, tinha 17 anos e achava que estava tudo bem, ou não mal demais. Amadureci devagar.
* * *
Nelson Rodrigues disse, ou escreveu, que no Maracanã se vaia até minuto de silêncio (e também mulher nua, mas nisto não acredito). É verdade, vaia-se mesmo. E essa frase ficou como um dos símbolos da brejeirice nacional – da brejeirice e não da falta de educação tão corriqueira por aqui.
Bem: há uns vinte anos, na inauguração de uma casa noturna aqui em São Paulo, a plateia vaiou forte o João Gilberto, que, segundo um hábito antigo dele mesmo, mais reclamava do som do que cantava. João se ofendeu; Caetano, na plateia, se ofendeu; Tom Zé, que eu não sei se estava lá ou comprou a briga fácil depois, se ofendeu; enfim, a nata e o soro da cultura nacional se ofenderam. Vaiar o João, imaginem. E ainda por cima a plateia estava, ou devia estar, toda bêbada (a nata e o soro da cultura nacional são abstêmios, como se sabe). No show a forra mansinha do João foi cantar que “vaia de bêbado não vale”.
Morto o João, teve logo depois um jogo no Maracanã. A junção de tantos símbolos culturais cariocas e nacionais impunha o minuto de silêncio. Pois o rodrigueano Maracanã vaiou o minuto de silêncio dedicado à memória do João. Sinuca de bico para a análise: ou a nata e o soro da cultura nacional aplaudiriam a brejeira vaia, a alma terna e gozadora da brasileirice se manifestando, ou se ofenderia com os sessenta mil milionários encachaçados fazendo coisa que não vale. Caso a segunda hipótese tenha sido a verdadeira, admitamos que o Maracanã já não é mais o mesmo: o jeito é dedicar o tal ódio eterno ao futebol moderno e só ver jogo no campo do Olaria, do São Cristóvo e outras canchas tais.
Observai que eu não estava nem no show, nem no jogo; falo portanto só de povo, de pinga e de vaia. Do João, como de todos os finados, só falo bem. E entre me ler e ouvir o “Amoroso”, ide, ide logo ouvir o “Amoroso”. O disco é lânguido, é molinho, é macio, às vezes parece que falta ar, é em suma uma fraqueza da natureza, mas é um disco legal.
* * *
A propósito aliás do disco “Amoroso”: li de alguém há tempos – talvez do Nelson Motta – que o disco foi gravado em Manhattan, num estúdio que ficava num andar alto de um arranha-céu. Ora, quem já esteve num estúdio de gravação sabe que na sala acusticamente isolada não entra nem sai som nenhum, e é assim mesmo que deve ser. Pois lá dentro dela João Gilberto se queixava de não sei qual ruído, qual zumbido, e daquele jeito não dava, e vocês dêem um jeito nisto. Tanto infernizou a gente da produção que saíram atrás do tal ruído, e acharam: uma britadeira furando a rua, a quinze andares e duas ou três quadras de distância.
Sinceramente: para mim, essa história é mentirosa, mas torço muito para que não seja, e que um tal par de orelhas tenha existido.
* * *
A gente julga tudo e todos o tempo todo, amigo. O que a gente não faz é propagandear cada um dos nossos microvereditos. Nem mesmo numa newsletter.
No mais, até mais.
A explicação sobre o Gerardo do nome próprio é dada pelo poeta na Nota de abertura de "O bêbado de Deus", hagiografia sobre o Santo homônimo. "Geraldo é uma corruptela de Gerardo, antropônimo da onomástica germânica, em que a desinência adjetiva "ard" ou "hardt" significa "forte", ou "cheio de" (...)Gerhardt ou Gerard ou Gerardo significa "forte pelas armas", sendo "Ger" ou "Gehr" uma forma arcaica de "Wehr" - arma -, também significando "ímpeto" ou "desejo". (p.11 op. cit).
Ótima! Vários minutos de sorriso constante, uma gargalhada completa, e ainda saí com uma nova expressão a ser usada o quanto antes: "estava num mal humor de vaiar mulher nua".