167. Ensinamentos; Z; turcos; esportes; marble; badalone; coleção; bloke; retroflexo; meu & mano & pai; sororidade
“O que tal coisa/tal pessoa tem a nos ensinar sobre tal coisa/tal assunto.”
Não me recuso a aprender. O que eu não gosto é de viver como se estivesse o tempo todo num curso online.
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Navegando por essas redes vi um anúncio, ou um aviso, não sei bem como classificar a coisa, dizendo que a Geração Z (cerca de 2 bilhões de pessoas) decretou que é para as demais gerações pararem com esse negócio de usar o emoji de joinha – aquele com o dedão para cima, que quer dizer tudo bem, tudo certo, tudo jóia.
Vejam só: a gente já tem que obedecer Governo, patrão, polícia, gramática, aritmética, cônjuges, médicos, às vezes cuidadores, mais raramente a consciência, e agora ficamos também sob o tacão das botas da Geração Z. Cujos porta-vozes ou representantes eleitos não são conhecidos de ninguém, mas hão de existir, haja vista que andam decretando coisas como essas.
Tomemos tento, e rezemos para a Geração Z não resolver nos proibir de sair de casa. Consta que os bifes eles já andam querendo proscrever.
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Depois de tomar um banho turco, Toninho saiu do... da... do lugar lá onde se dão banhos turcos com um bigodão retorcido, um chapéu fez, uns sapatos vermelhos de bico virado para cima e uma vontade enorme de humilhar uns gregos.
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Esportes das minhas olimpíadas oníricas (aquelas que eu me obrigo a acompanhar):
Ping pong slalom.
Hóquei na areia.
Surf urbano.
Esgrima sobre patins.
Rugby ornamental.
Canoagem indoor.
Arremesso de woke.
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Venho lendo devagar um livro de ensaios humorísticos de Robert Benchley chamado “Wit”. O livro é português; faz parte de uma coleção de livros de humor coordenada pelo gaiato gajo chamado Ricardo Araújo Pereira, ele mesmo camarada muito engraçado, e sai lá fora pela editora Tinta-da-China (que é tinta nanquim, como já expliquei antes por aqui). É tradução do volume chamado “The best of Robert Benchley: 72 timeless stories of wit, wisdom & whimsy”, título nada fácil de traduzir e que os portugueses, safos, abreviaram no “Wit”.
Seria possível fazer meia newsletter perorando a respeito do quanto é difícil traduzir wit para o português; para sua sorte, amigo, não a farei. Vamos fechar a parada aqui de momento adotando como tradução a expressão “humor inteligente”. Porque é exatamente o que Benchley fazia: humor inteligente, dos mais inteligentes do seu tempo e de todos os tempos. O livro que ando lendo provavelmente é uma recolha de artigos seus para a New Yorker, com a qual colaborou entre 1925 e 1940. Ele foi também um dos famosos que tinham assento na mesa redonda do hotel Algonquin. Foi famoso não só como escritor de humor e crítico de teatro: também fez pontas em diversos filmes (inclusive um de Hitchcock) e escreveu e estrelou uns curta-metragens muito engraçados, como o How to sleep, que o amigo, se quiser, verá abaixo (com legendas em castelhano):
Eis sua mais do que falsa e muito sucinta autobiografia:
Nascimento: Ilha de Wight, 15 de setembro de 1807. Embarcou como grumete no navio Florence J. Marble, 1815. Preso por bigamia e homicídio em Port Said, 1817. Solto em 1820. Escreveu “Um conto de duas cidades”. Casou com a princesa Anastácia de Portugal em 1831 Filhos: Príncipe Rupprecht e um monte de meninas. Escreveu “A cabana do Pai Tomás” em 1850. Editor da Godey’s Lady’s Book de 1851 a 1856. Começou “Os Miseráveis” em 1870, terminado por Vitor Hugo. Morreu em 1871. Sepultado na Abadia de Westminster.
Saiba de cara o amigo que o Florence J., sem “marble” nenhum no nome, foi um navio renomado por adernar na hora mesma em que saiu do estaleiro, em 1913 ou 1914, nos Estados Unidos.
Agora, duas coisas.
A primeira: em 1421, o arquiteto italiano Filippo Brunelleschi construiu um barco, ao qual deu o nome de “Il Badalone”, para trazer mármore de Pisa até Florença pelo rio Arno. O Badalone afundou na primeira viagem que fez. Se carregado ou descarregado, não consegui descobrir. Fato é que Brunelleschi, que, além de inventor do barco, era também o armador, perdeu muito dinheiro com esse naufrágio ribeirinho.
A segunda: trezentos e trinta e quatro anos depois, em 1755, o imperador chinês Qianlong construiu, no lago do seu palácio de verão, em Pequim, um barco ao qual deu o nome, bem chinês aliás, de “Barco da Pureza e da Tranquilidade” (ninguém diria, vendo os chineses, que eles são tão fãs da tranquilidade e da pureza). Tinha nome poético de barco, mas não era exatamente um barco: era um pavilhão de madeira erguido sobre uma base de alvenaria que tinha a forma de um barco. Foi queimado em 1860, na guerra do ópio, e restaurado em 1893 pela imperatriz viúva Cixi. Desta vez, a madeira do pavilhão renovado foi pintada para se parecer com mármore.
Um navio que adernou quando foi lançado; outro que afundou carregado de mármore na viagem inicial; e um terceiro que não é de mármore, não flutua e nem navio é.
Robert Benchley tinha toda essa teia complicada de azares e fajutices em mente quando acrescentou um “marble” ao nome do navio Florence J. em sua autobiografia fajuta? Não faço ideia. Mas torço muito para que sim. Seria um exemplo esplêndido de wit. E torço ainda para que cada texto dele tenha embutida uma sacanagem complicada dessas para alguém, um dia, vir elucidar ou especular em alguns parágrafos de uma newsletter.
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O termo italiano badalone é traduzido em português como facistol. Calma, amigo, a palavra nada tem a ver com fascismo; veja que nem tem “s” antes do “c”. Segundo o muito acreditado e nada fascista sr. Houaiss e seu dicionário, o facistol é uma “estante grande onde se colocam os livros nos coros das igrejas”, e também leva entre nós os nomes de atril e leitoril. Eram usados os facistóis (atris, leitoris) para apoio ou suporte daqueles livros imensos, os folios ou os in-folios, que tinham mais de meio metro de altura de folha e pesavam tanto quanto um homem.
Dá para deduzir que Brunelleschi achava que os folios pesavam como placas de mármore ou, como dizia lá o Claudiomiro, vice-versa, daí ter batizado assim seu barco.
O Badalone, ou antes seu modelo, seu projeto, tem também uma primazia curiosa: terá sido uma das primeiras patentes registradas na história do Ocidente. Seu azar inicial pode ter tido algum impacto no atraso com que essa novidade do registro pegou. Para não dizer que ele não deve ter pego nem uma lira de royalties.
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A coleção que tem o Benchley não é muito recente (meu exemplar é de 2011), e a Tinta-da-China não a editou por aqui, mas é toda ótima. Tem dois brasileiros: Machado de Assis (“Memórias póstumas de Brás Cubas”) e Campos de Carvalho (“O púcaro búlgaro”), mas também Dickens (“Pickwick”, que eles intitulam “Os cadernos de”), Gontcharov (“Oblómov”), S. J. Perelman (“O mundo de S. J. Perelman”, grande influência no Woody Allen) e os irmãos George e Weedon Grossmith (“Diário de um Zé Ninguém”). Tudo em euros no site português, e bons euros, não módicos euros, mas, como se diz, fica a dica.
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Eu tenho a impressão de que para nós, brasileiros, falar gajo é o mesmo que para os americanos falar bloke. Quer dizer, fica todo o mundo parecendo ator de novela ou comediante desses programas de caras sentados em bancos de praça.
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As meninas que fazem chamados em alto-falantes de lojas e supermercados em São Paulo não conseguem nunca dizer ao Fulano ou Fulana convocados “empacotador Fulano, por favor, compareça” lá aonde chamam, e nem “é favor comparecer”. Dizem sempre “favor comparecer”, e sempre com os rr retroflexos mais doloridos aos ouvidos: empacotadôrrrrrr Fulããããno, favôrrrrrr comparecêrrrrrr.
Nos tempos mais bárbaros da minha juventude, com sua selvageria indiscriminada e seus tiroteios nos berçários, quem falasse assim em São Paulo era muito sacaneado:
— Cê é caipira, sô?
Ou cantavam:
— O riiiiiio de Piracicaaaabaaaa.
Os rr da capital eram linguais ou fricativos uvulares (raspados lá perto das amídalas). Os meus são. O retroflexo, que veio, dizem, lá dos lados do ABC, se impôs entretanto, a ponto de já não haver mocinha ou rapaz nesse tipo de atividade e na classe social respectiva que não o tenha por ortoépia nativa. Talvez seja marca de socioleto. Mas eu acho que já está passando além disso também.
A gente perde o mundo de mil maneiras.
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Meu pai estranhou muito esse negócio de “meu” quando o percebeu, na segunda metade dos anos 70. Estranhou e se irritou.
— Meu, meu, meu. Todo o mundo é teu, agora?
Como eu estranhei e me irritei quando, uma década depois, começou esse negócio de “mano”.
— Não sou teu irmão, cazzo – respondi mais de uma vez.
Pois os meus e os manos foram passando por cima dele e de mim. Assim como agora essa porqueira irritante de “pai” está passando por cima de meus e de manos e, de novo, de mim.
Se existisse a imortalidade neste mundo, ela seria um castigo.
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No prédio onde fomos morar vivem muitas pessoas velhas – digo, mais velhas do que nós. Minha mulher fez amizade depressa com uma senhora a quem coube o infortúnio de ter que cuidar do marido com Alzheimer, tarefa que a empobreceu e que ela não cumpre sem se lamentar bastante a todos os que encontra. Ontem ela encontrou minha mulher no elevador e, num rasgo de simpatia feminina, talvez de sororidade, disse:
— Desejo à senhora que o seu marido morra uma morte breve, pois só Deus sabe o que eu estou passando.
Eis aí, leitor amigo, para sua instrução e escarmento, uma das muitas sumas do que é o ser humano. Mas, claro, se eu puder escolher morte, que seja ligeira.
E até semana que vem.
Robert Benchley aparece no filme "O Dragão Relutante" ,onde ele tenta vender uma história pro Walt Disney transformar em desenho animado. Certamente o How to Sleep do Robert Benchley inspirou o curta do Pateta com o mesmo nome.
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