182. Sinos; Mauro; lista; Auberon Waugh; enxada; gatos; bandeira; idioma; enxaqueca; certeza; link
Os sinos de São Rafael batem às nove da manhã, ao meio-dia, às três, às seis da tarde e talvez (não lembro) às nove da noite, hora em que soa também esta newsletter. Sempre que batem, olho no computador e no celular e neles é nove e um, meio-dia e um, três e um, seis e um, quiçá vinte e uma e um. Fico feliz: que bom que a Igreja não está sincronizada com estes badulaques e, pois, como o que ora chamamos de “mundo”.
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Escrever um ensaio enorme sobre o Mário Quintana chamando-o sempre de Mauro Quintana, para ver não quem corrige, mas quem começa a repetir.
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Um leitor gentil sugeriu, há algum tempo, que eu falasse por aqui com mais frequência dos livros que estou lendo. Bem, o tempo tem feito com que eu seja um leitor cada vez mais vagaroso; e também cada vez mais chato, cada vez mais mal-humorado com os livros de que não gosto, e cada vez mais abandonando leituras pela metade, ou até antes da metade. Ora, a nossa chatice só deve ser compartilhada se a gente puder confeitá-la com algum charme, o que raramente é possível. Ao menos para mim.
Daí que eu procure falar só dos livros de que estou gostando. Agora, por exemplo, recém comecei Moll Flanders, de Daniel Defoe, que faz parte de uma lista de trinta obras que W. (o que era esse W.?) Somerset Maugham reputou essenciais, aliás é logo a primeira delas, e que estou, há um bom tempo, tentando seguir. Se o amigo quiser tentar também, eis a lista (os títulos em inglês não têm tradução no Brasil, ou não as achei):
1. “Moll Flanders”, Daniel Defoe.
2. “Viagens de Gulliver”, Jonathan Swift.
3. “Tom Jones”, Henry Fielding.
4. “A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy”, Laurence Sterne.
5. “The life of Samuel Johnson”, James Boswell (há uma tradução nacional, meio esquisita, para kindle, e uma espanhola muito boa).
6. “Boswell’s journal of a tour to the Hebrides with Samuel Johnson”, Frederick A. Pottle & Charles H. Bennett (eds.).
7. “The lives of the poets”, Samuel Johnson.
8. “Memoirs of my life”, Edward Gibbon.
9. “David Copperfield”, Charles Dickens.
10. “The way of all flesh”, Samuel Butler (para kindle).
11. “Mansfield Park”, Jane Austen.
12. “The fight and other writings”, William Hazlitt.
13. “Vanity fair”, William Thackeray.
14. “O morro dos ventos uivantes”, Emily Brontë.
15. As grandes tragédias de Shakespeare: Romeu e Julieta; Hamlet; Rei Lear; Otelo; Sonho de uma noite de verão; A tempestade (acho que Millôr Fernandes traduziu todas, e, se o fez, tá tudo baratinho naquelas edições de bolso da L&PM).
16. “Dom Quixote”, Miguel de Cervantes.
17. “Ensaios”, Michel de Montaigne.
18. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, Goethe.
19. “Pais e filhos”, Ivan Turguêniev.
20. “Guerra e paz”, Liev Tolstoi.
21. “Os irmãos Karamázovi”, Dostoiévski.
22. “A princesa de Clèves”, Mme. De Lafayette.
23. “Manon Lescaut”, Prévost.
24. “Cândido, ou O otimismo”, Voltaire.
25. “As confissões”, Rousseau.
26. “O pai Goriot”, Balzac.
27. “O vermelho e o negro”, Stendhal.
28. “A cartuxa de Parma”, Stendhal.
29. “Madame Bovary”, Flaubert.
30. “Em busca do tempo perdido”, Proust (quer dizer, todos os volumes).
Se a curiosidade do amigo incluir saber desses todos quais os que consegui ler até agora, eis: 2, 11, 14, 15, 16, 19, 21, 22, 24, 26, 27 e 29. Menos da metade, portanto. Não sou pois muito para se levar a sério como leitor.
Ah: se lhe vier a vontade de resmungar contra W. Somerset Maugham, saiba que Paulo Francis e George Orwell gostavam muito dele. E eu, que nem original sou, vou na aba dos dois.
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Auberon Waugh era filho de Evelyn Waugh, o que é, de certo modo, nascer com uma mão ruim no pôquer da vida se você quiser um pai amoroso, atencioso, etc. Mas a mão é boa em outros sentidos: o de escrever, por exemplo.
Auberon escreveu seus diários mentirosos, fictícios, alucinados, por treze anos, de 1972 a 1985, na Private Eye, revista inglesa de humor que circula até hoje e que tem, ou tinha, o bom costume de bater e ridicularizar todo o espectro. Hoje talvez tenha achado lado, não sei. Em todo caso, vão aí uns trechinhos de uns diários dele traduzidos por mim, lamentavelmente sem as datas. Aproveite.
Nunca me canso de dizer que a política é para os excluídos emocionais e sociais, gente defeituosa, ressentida. A serventia da política é ajudar essa gente a superar seus sentimentos de inferioridade e compensar seus defeitos mediante a luta pelo poder.
Seria ótimo se adotássemos o urubu como símbolo nacional britânico, assim como os americanos adotaram a águia careca. É porque a Bandeira da União já foi usada como bermuda, como cueca e até como toalha de piquenique pelos leitores do jornal The Sun, e eu só queria ver essa gente nojenta tentando sentar em cima de um urubu.
Telegrama patético de dois americanos pede que eu interceda por eles junto à Rainha para provar que o tio-avô dela, o Príncipe Alberto Vítor Christian Eduardo, Duque de Clarence, filho mais velho de Eduardo VII, era Jack, o Estripador.
Na verdade eu já tentei, em várias ocasiões, tratar desse assunto doloroso com Sua Majestade, mas ela não foi lá muito receptiva. Chega quase a dar a impressão de que não está nem aí.
Acho que sou o único sujeito razoavelmente distinto na Inglaterra que ficou de fora do testamento de Cecil Beaton. Onde foi que eu errei? Achava que seria digno de receber pelo menos um lencinho de bolso.
Greta Garbo disse de Beaton o seguinte: 'Ele foi o único homem que teve permissão para tocar minhas vértebras'. Eu também as toquei, mas sem permissão, me fingindo de dermatologista vascular em Nova Iorque. O segredo dela é que ela é mesmo um iguana.
Embora eu tenha guardado esse segredo, ela nunca me perdoou por descobri-lo. Me sinto uma espécie de assassino.
"Em Hatfield, na festa dos 81 anos de Barbara Cartland, a romancista cor-de-rosa que vem de ser apontada Rainha Mãe Presumida. Belo encontro da velha guarda: Rebecca West, 92 anos; Malcom Muggeridge, 81; Gloria Swanson, idade desconhecida; Sir John Junor, 83; Sir Nigel Dempster, 71; Lord Goodman e Lady Diana Cooper, os dois com 85; Sir Arthur Rubinstein, 106...
Eu estava à espera de um banquete, dado que a Sra. Cartland é podre de rica, mas ela só tinha a oferecer Geléia Real e fibras naturais enriquecidas com vitaminas A, B2, E e F.
A velharada caiu em cima com apetite, mas eu não aguentei nem pensar em todas aquelas vitaminas. Em vez disso, achei um velho pequinês adormecido em cima de uma almofada de seda rosada, e o degustei pausadamente.
Na Missa de réquiem do presidente Georges Pompidou, na Catedral de Notre Dame, me pego ao lado do presidente Jean Bedel Bokassa, da República Centro-Africana. Conforme ajoelhamos, percebo que ele está bêbado, e parece estar padecendo de uma infestação de piolhos pubianos. Pobre Pompidou! Nunca dei muita bola para ele, mas, como político, decerto foi pro Inferno, e no entanto merecia uma despedida melhor do que a que este bando de assassinos e mentirosos profissionais pode oferecer.
O presidente Nixon parece distraído. Mal consegue esperar o fim da Missa para bajular o presidente Podgorny, e chacoalha seu crachá na direção dele do modo mais vulgar. O General Bokassa me vê dando língua para os dois e pergunta quem sou eu; para preservar meu anonimato, digo que sou o Rei da Suécia.
Depois do Serviço, Bokassa me convida a dar umas voltas por certas boates diferentonas que ele conhece ali pros lados de trás da Gare du Nord. Gentilmente, declino.
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Uma da manhã, alguém cavuca com enxada um canteiro da avenida lá embaixo: o barulho inconfundível da lâmina dando na calçada sobe até aqui. Que hora absurda pros jardineiros.
Se é que eram jardineiros.
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A porta do quartinho que uso como escritório dá para o corredor dos outros quartos; sua janela, entretanto, dá para a área de serviço. Os gatos gostam de entrar nele para assuntar, para morder de leve as minhas canelas, para miar desconsolados diante das portas do guarda-roupa embutido, ou para deitar no teclado deste laptop; para mantê-los fora, fecho a porta. Debalde: eles já aprenderam a vir pela janela.
Gatos são burros em quase tudo; só não são no que lhes interessa. São, pois, praticamente humanos.
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Escrevo este trecho no dia 19 de novembro, Dia da Bandeira. O à bandeira foi o primeiro dos muitos hinos que aprendi na escola, creio que ainda no pré-primário, aquele que os mais jovens não devem conhecer. Começa assim: “Salve, lindo pendão da esperança; salve, símbolo augusto da paz! Tua nobre presença a lembrança da grandeza da pátria nos traz!”.
A professora (dona Flora, a dos róseos pezinhos) se deu o trabalho – hoje provavelmente inimaginável – de nos explicar o que queriam dizer “pendão” e “augusto”, bem como as inversões do “tua nobre presença” em diante. Isso levava o nome arcaico de ensinar, e era parte da imensa caridade das mulheres (só vim ter professor homem no ginásio, e eles eram muito mais carrascos do que elas).
Era um tempo de hinos. O Nacional, claro. Mas também o da Independência, o da República, o da Marinha, a Canção do Expedicionário (cuja primeira estrofe é muito boa: “Por mais terras que eu percorra não permita Deus que eu morra sem que volte para lá, sem que leve por divisa esse V que simboliza a vitória que virá”), e até o do padroeiro da nossa escola, o Padre Anchieta, que naquela época ainda não era nem beato. Seu hino foi meu primeiro virundum: onde se cantava “vimos hoje saudar-vos contentes” eu e minha enxaqueca entendemos um dia “protegei-nos da fauna terrestre”.
As sextas-feiras começavam com a solenidade, meio pseudo, meio séria, de, antes das aulas da tarde começarem, nos alinharmos diante da bandeira para cantar hinos. Sempre o dela, sempre o Nacional, sempre o de Anchieta, e um quarto que variava. Em setembro, o da Independência. Em novembro, o da República, cuja letra batatal já a prenunciava: “seja um pálio de luz desdobrado sob a larga amplidão destes céus este canto rebel que o passado vem remir dos mais torpes labéus”. Não era o passado que vinha remir sei lá quem dos tais torpes labéus: era o “canto rebel” que vinha remir o passado. Como se isso fosse possível. Perceba, amigo, que cada vez mais se pensa assim, que sobra cantoria rebel contra um passado que quase ninguém mais conhece, cuja remissão impossível é pretexto para as patifarias da hora.
Enfim, isso é amargor meu. Na época, cantávamos meio na galhofa, mas às vezes um verso caía como um raio no nosso (no meu, pelo menos) entendimento, e ficávamos (eu ficava) subitamente sérios: “mas se ergues da Justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme quem te adora a própria morte”. O amigo sorria, se quiser, mas se eu canto ou ouço cantar isso em meio a muitas vozes ainda acabo, como dizia o sambinha, trazendo os olhos rasos d’água.
Parece que falo de um tempo morto. De Roma, de Bizâncio, dos Ptolomeus. Quizás, quizás, como reza o bolero. Ou, já que falei em galhofa ali em cima, quem sabe com este texto tenha vindo junto, sem convite, a tinta da melancolia.
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“O à bandeira foi o primeiro...” Já lhe disse, amigo, para amar o seu idioma? Pois ame.
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Padeci de enxaquecas a infância toda. Migraine boy, sim. Desapareceram quando fiz treze anos. Eu não sabia, evidentemente, que aquilo era uma enxaqueca: eu chamava de “dor de cabeça”, nome aliás perfeitamente descritivo da coisa, a qual começava leve e evoluía para o latejamento da testa e das têmporas, a necessidade quase vampiresca de ficar no escuro, e frequentemente náuseas e vômitos. Quase sempre eu ia parar no hospital, onde me curavam com uma injeção simples de plasil e glicose. Demorou um bom tempo até que eu percebesse sozinho que minhas enxaquecas vinham nos dias em que eu não tomava café da manhã; talvez eu me aferrar ao hábito das três refeições diárias (ou das quatro, ou das cinco, que sei eu), sem concessões, tenha me curado: é uma possibilidade. E só adolescente, ouvindo minha tia Nenê falar das dores de cabeça dela, descobri que podia resolver tudo com novalgina, cibalena ou aspirina. Sem hospital, sem injeções, sem náuseas.
Claro que minha tia era ridícula. Comentei com ela sobre as minhas então já superadas enxaquecas, e ela me rebateu com seu heroísmo, sua abnegação, seu senso inabalável de responsabilidade e de dever: tinha dores de cabeça horríveis e não tinha tempo nem para tomar uma aspirina! Mas ela trabalhava em casa (era o que um dia se chamou modista, profissão que não sei hoje qual nome tem, caso ainda exista), a dez passos da cozinha: podia parar um minuto e meio para tomar uma pílula. Aposto que parava para mijar de manhã e de tarde: dava para tomar o comprimido até sentada no vaso. Coisas que pensei sem falar nada: a tia era ridícula e temível. Só meu pai para mandá-la parar com o dramalhão (ele mandava, e ela, claro, não parava).
Uma vez, eu enjoado na maca – tinha uns nove ou dez anos – o médico começou a me auscultar um pouco demais. Minha mãe ficou atenta.
— Seria bom ele fazer uns exames – disse à velha o doutor. – Parece que ele tem sopro no coração.
Fiz décadas depois, não sopra nada, nem fiu-fiu o safado faz. Mas saí de lá achando que morreria morte de poeta ou de roqueiro, antes dos trinta. Comecei a pensar em mim mesmo com pena, com tristeza. Quando eu ia me dando ares de tia Nenê – o pobre menino moribundo: choremos à roda dele –, meu pai os cortou.
— Deixa de ser idiota.
E decerto me deu uma fatia de mortadela. Para mandar a enxaqueca pra longe.
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Leio aí pelas internets o nome do Altemar Dutra e lembro que meu finado e pranteado amigo W. C. Oliveira achava que Bryan Ferry era uma espécie de Altemar narigudo e cheio de gel no cabelo. O amigo estava errado, mas só quando vivo: aos mortos cedamos o privilégio de estar sempre certos.
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Se o amigo padecer de enxaquecas também, não se incomode. Se, entretanto, não padecer, clique e leia minha crônica nova na Crusoé. E até semana que vem.
"Nunca me canso de dizer que a política é para os excluídos emocionais e sociais, gente defeituosa, ressentida. A serventia da política é ajudar essa gente a superar seus sentimentos de inferioridade e compensar seus defeitos mediante a luta pelo poder." Isso é assertivo e genial.
"Gatos são burros em quase tudo; só não são no que lhes interessa. São, pois, praticamente humanos." Muito bom, Orlando. Rindo aqui também dos trechos traduzidos. Obrigado por traduzir e compartilhar conosco. Vou procurar esse diário do Auberon Waugh.