212. Sono; mijar; esporte burro; a ilha dos mortos; série; tudo bem?; eu, leitor; fábricas; link
Por favor, me acordem quando o Brasil parar de acordar.
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Num dia mais ou menos como os que têm feito em São Paulo, gelados de manhã, com solzinho do meio-dia em diante, lá por 1992, passei seis horas dentro de um ônibus, indo da minha casa, em Itaquera, ao Parque Dom Pedro II pela Radial Leste. Era greve do metrô. Eu estava com um volume das Aventuras do Sr. Pickwick, e tinha 25 anos. O que mais espanta o homem de 58 nessa história é aquele rapaz ter aguentado seis horas sem ter que ir mijar.
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Arremesso de peso é um esporte legal porque é bronco, burrão: consiste em tacar uma pedra (hoje, uma bola de ferro) o mais longe possível, coisa muito útil nas guerras de 2000 antes de Cristo e pois premiável nas Olimpíadas daqueles tempos.
Talvez seja o mais conservador dos esportes.
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Ainda não são conhecidas todas as circunstâncias da morte do influenciador A. L. S. F. no lastimável desentendimento que teve com o batalhão inteiro da ROTA. As investigações prosseguem. Entre os muitos documentos encontrados pela Polícia Federal em seu computador, vários dos quais lançam sombras perturbadoras sobre a sua já controversa memória, está o texto a seguir, exercício literário, e quiçá premonitório, que não contará entre as menos aflitivas de suas muito aflitivas ações. Foi feita a revisão de praxe, a fim de facilitar ao público a leitura. Um ou mais volumes póstumos estão nos planos de uma grande editora nacional.
A ilha dos mortos
Era uma vez, há alguns anos atrás, havia um egípcio muito mau, chamado: Qwertyuiops, que roubava, matava, machucava crianças e muito mais.
Um dia a polícia pegou ele e o levou para seu terrível destino. Enquanto os guardas daquela época decidiam o que iriam fazer com: Qwertyuiops, ele acenava para as pessoas que estavam na fila para a sentença de morte. Enfim decidiram o que iriam fazer com ele: a pior sentença que o Egito dava há séculos.
Quando chegou o dia de matar: Qwertyuiops, o guarda que o enterraria vivo disse:
— Tenho pena de você. Se fosse por mim, eu não te enterraria sem faixas, quase não será preservado!
— E você acha que ligo se tem dó de mim? Hahahahaha – disse: Qwertyuiops.
— Eles estão vindo para te enterrar, boa sorte!
— Não preciso de sorte!
Os guardas chegaram, e um guarda falou:
— Não vai falar nada, é?
— Um dia vão me desenterrar e acharão meus ossos, e quando fizerem isso, não queira estar vivo!
O guarda curioso perguntou:
— O que você vai fazer, hein?
— Eu nada, mas os mortos vão.
Por isso: Qwertyuiops foi enterrado 7 palmos a mais, no total 14 palmos abaixo da terra.
Muito tempo depois, a pequena cidade do Egito foi se desfazendo até virar uma ilha deserta. Um dia um avião cheio de cientistas caiu na ilha e nenhum sobreviveu.
Só que quando caiu, o impacto foi muito forte, areia voou para todo o lado e: Qwertyuiops ressurgiu com os mortos da pequena cidade do Egito. E uma era de trevas terríveis caiu sobre a humanidade.
E a culpa de tudo foi dos cientistas e do avião que vivia caindo.
Agora: Qwertyuiops saiu da ilha e reina com os mortos no seu castelo feito de ossos de crianças no antigo Egito e fica matando todo mundo sem motivo.
— Hahahahaha – disse: Qwertyuiops.
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Ideia para uma série moderna, atual: Morccilha (lê-se “mortchílha”), detetive zumbi que se parece com, e cheira como, um chouriço. Ela desvenda crimes em Palmas, Tocantins, enquanto come os cérebros dos malfeitores e espanta necrófilos, tanatófilos, moscas e cozinheiros que querem fatiá-la.
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Juliana Amato tem uma newsletter muito boa de ler, Microclima, em que conta sua vida em Florianópolis, com ênfase no aspecto “mãe da Cecília”. Este, como todos os resumos, é insuficiente e precário; melhor você ir lá ler e entender melhor o que a prosa boa e inteligente dela explica bem.
Na sua última edição, Juliana fala da sua “grande coleção de começos”: todas as muitas coisas que iniciou e não terminou (livros, escritos, cursos, exercícios físicos, terapias, caminhos de Santiago), devido ao que chamou de sua “resistência patológica à continuidade”, e como esses começos sem fim a enchem de interrogações a respeito de sua determinação, ou de sua constância, ou de sua firmeza para levar os inícios a algum porto ou ponto final – a tal ponto que põe em dúvida sua própria condição de escritora.
Tirando o possível exagero da palavra “patológica”, o fato é: comigo a coisa tem sido parecida e igualmente descontinuada. Quase tudo o que terminei, ou quase tudo em que tenho sido constante, foi a despeito de qualquer espécie de determinação, constância ou firmeza conscientes: aconteceram no vai da valsa, no trem andando enquanto eu, na janela, pensava em outras coisas, enquanto eu pretendia ou planejava outras coisas – as que nunca acabaram, ou nunca começaram. Assim fui filho, marido, pai, profissional, e é assim que venho aqui toda semana com alguma coisa escrita: porque transformei esta newsletter num dos passos dessa valsa que vai, vai, vai indo.
Posso dizer ainda que é por acaso que mantenho esses acasos. E que os sucessos da minha vida são as coisas que aconteceram sob as nuvens que eu, tonto, tolo, teimei em pisar. E levei uns tombos que nem te conto.
Assim, Juliana, se eu puder ter a ousadia de acrescentar alguma coisa ao que você disse, é isto: a minha vida tem sido, na maior parte, bumba-meu-boi e figa – acrescida de sacrifício e amor a e por quem de direito. E, por enquanto, tudo bem.
Tudo bem?
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Não gosto de falar de mim como escritor, especialmente nesta rede em que tantos falam tanto sobre isso; mas falo alguma coisa de mim como leitor. Cá nesta vetusta eu leio menos, leio mais devagar, me aventuro menos, estou menos curioso, e presto cada vez mais atenção ao sentido das palavras. Portanto, sou leitor moroso, manhoso, cansado e irritável.
E isto do sentido das palavras é mesmo um negócio sério. O amigo Paulo Polzonoff já me bronqueou: “Bah! Você anda literal demais!”. (“Bah”, saiba o amigo, é uma gíria curitibana que quer dizer “bah”.)
Ando. Não sou imune à metáfora, à alegoria, à maior parte da poesia, mas ando sim literal. Quer me fazer desistir de um texto é meter nele uma palavra mal usada, fora de seu sentido por razões óbvias de ignorância, ou esvaziada dele por clichê.
Por isso que de vez em quando amolo amigos, leitores e amigos leitores com transcrições do dicionário. A semântica é importante, porra.
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Wandi Doratiotto, o poeta imortal dos versos “em terra que só tem saci/um par de meia dá pra dois”, era o letrista quase oficial do grupo Premeditando o Breque, nome comercial e sabiamente abreviado para Premê. Em 1983, macaqueando New York, New York, do Sinatra, gravaram e lançaram São Paulo, São Paulo, primeiro num compacto do selo Lira Paulistana, depois no LP Quase lindo, da mesma etiqueta.
A letra não é das mais inspiradas do poeta mavioso, do patativa da Lapa – se é que é dele, do que estou duvidando. O refrão entra torto, parece que engolindo um perdido primeiro verso, e tem pelo menos duas mancadas: cita Utinga, bairro de Santo André, e diz que “na periferia/a fábrica escurece o dia”.
Bem, fábricas escureceram o dia de São Paulo, talvez, mas não na periferia; quando estiveram na periferia, foi muito antes de 1983. As fábricas de São Paulo ficavam no Brás, na Moóca, na Lapa, na Barra Funda, bairros limítrofes nos anos 10 e 20: Itaquera, periferia nos 80 e quiçá até hoje, onde morei muito tempo, não fabricava nada além de crianças. E, embora essa manufatura possa ser feita no escuro, as crianças são a luz da vida e não a treva das tardes. São Miguel tinha e tem ainda a Nitro Química, mas essa, se escureceu alguma coisa, foi o Tietê.
Agora as indústrias de São Paulo foram quase todas embora e a cidade se diz “de serviços”, área em que não excede na competência, ainda que nisso seja melhorzinha que o resto do país. Os velhos galpões industriais que não foram postos abaixo se transformam em condomínios, mercados, faculdades, restaurantes, oficinas mecânicas, outlets. Ou ficam simplesmente abandonados, como as instalações gigantescas da Antarctica, na Moóca, que, mais dia, menos dia, desabarão. A gente passa por aqueles colossos de tijolo aparente e janelões enormes e pensa, já quase sem a lembrança do que foi aquilo, no mar de gente entrando e saindo de tecelagens, biscoiteiras, autopeças, cigarros, metalurgias, cervejeiras, gráficas, ao som dos apitos das oito da manhã, do meio-dia e das seis da tarde.
O refrão da música também fala em “morando num BNH”, sigla do velho Banco Nacional de Habitação, que construiu em São Paulo um certo número de conjuntos habitacionais até que bem decentes, mas sempre sinônimos de classe C. Nisto antecedeu a COHAB e o CDHU, piores e, esses sim, muito periféricos (ainda que não escureçam o dia): Itaquera, José Bonifácio, Cidade Tiradentes – bairros que não aparecem na letra, que só vai até Ermelino Matarazzo, na linha de trem antigamente chamada “variante” (depois chamada de Violeta, e hoje Safira) ou do Manoel Feio, destino final Calmon Viana, em Poá.
Em tempo: Poá não vem de poiré. Nem de petit pois.
Em tempo 2: eu sou fã do Wandi, de quem recomendo muito (entre outras) a letra de Antwort, substantivo feminino alemão que quer dizer, em resumo (léxico alemão, só em resumo), “resposta”. Procure, tem fácil no gúgli.
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Por derradeiro, claro, o link para a minha crônica nova na Crusoé. Leia, amigo, e faça figa para que, no bumba-meu-boi, eu volte semana que vem.
Na qualidade de contumaz leitor e admirador das Tosetto's Silly Talks, e também incurável apreciador dos léxicos e da etimologia, queria deixar minha suspeita de que a citada 'antwort' seja parente próxima da inglesa 'answer', mais conhecida por aqui. O caso mais estranho que descobri, de 'parentesco' entre palavras, é o nosso 'joelho' com sua equivalente inglesa 'knee' que, incrivelmente, e por mais estranho que pareça (já que não se parecem), tem a mesma origem.
Tosetto, caro mio, quero te mandar meu livro, "Quincas Borba e o Nosferatu". O Senhor Pickwick, por acaso, faz uma ponta. Mande mensagem com endereço para este que vos fala: edson.aran@uol.com.br